"Corridas de Obstáculos - resiliência e capacidade de adaptação", por Miguel Fernandes

Há uns anos, em Inglaterra, um veterano de guerra organizou uma corrida num percurso de floresta, enlameado, que passava por linhas de água e obrigava os atletas a ultrapassar obstáculos naturais e outros que haviam sido colocados no caminho para dificultar a vida dos corredores.

Jornalista
  • 2 dez 2019, 08:00
Miguel Fernandes
Miguel Fernandes

Nascia a primeira Corrida de Obstáculos, um tipo de prova que pretende testar os limites físicos e psicológicos dos corredores. Atualmente, em Portugal, esse conceito evoluiu ao ponto de já existir uma LIGA e até um circuito (LYNXRACE) que terá transmissão na TVI24 em 2020.

As próximas linhas são dedicadas a todos aqueles que gostam de desafios: aos que já se testam nos contornos mais ou menos exigentes destas provas, mas, principalmente, para aqueles que ainda não descobriram esta atividade desportiva.

Uma Corrida de Obstáculos é divertida, mas, ao mesmo tempo, um desafio difícil, duro e que deixará marcas no corpo e na mente de quem as pratica. A LYNXRACE é um exemplo: os atletas são levados ao limite (ao seu limite), numa aventura que engloba passar linhas de água, ultrapassar obstáculos naturais, como subidas e descidas íngremes, percursos de mato e, ainda, estruturas construídas de suspensão, equilíbrio e precisão. Nesta prova, os atletas correm, passam por valas, sobem a cordas e redes, escalam paredes e rampas, puxam e carregam pesos, disparam flechas e atiram lanças. Em suma, numa Corrida de Obstáculos, a LYNXRACE testa os nossos limites, damos tudo e quando achamos que não há mais energia, o corpo e a mente, surpreendem-nos.

Não me interpretem mal: é preciso treino, é preciso sair do sofá, é preciso gostar de evoluir. Mas isso é aquilo que estas corridas nos dão: realização pessoal, conquistas interiores, troféus que não precisamos de partilhar, mas que nos fortalecem mais do que medalhas penduradas no pescoço.  

Entre 11 e 13 de outubro de 2019, decorreu o quinto Campeonato do Mundo de Corridas de Obstáculos. Fui um dos atletas apurados para essa aventura e, em conjunto com outros portugueses e portuguesas, adultos e, até, crianças, lá fomos representar as cores nacionais. A este nível, a exigência, o desafio é elevado.

Deixo aqui um resumo dessa experiência. Um Mundial, três corridas, vinte e três quilómetros percorridas, cinco horas a correr, mil emoções sentidas!!! Podia juntar a isto uma foto espetacular, resumir, assim, a experiência deste ano e virar a página. Não chega! Nota informativa: no Campeonato do Mundo OCR fazemos a distância e se não conseguirmos completar os obstáculos entregamos uma pulseira ao árbitro que está no obstáculo e dessa forma somos desqualificados. É obrigatório fazer todos os obstáculos!

No primeiro dia, estava nervoso! Primeiro, porque estive a coxear até cinco dias antes da prova e não sabia como ia comportar-se a lesão contraída em Santiago do Cacém na ULTIMATE (Corrida de Obstáculos) e, depois, porque o ambiente do Campeonato do Mundo é, de facto, absorvente! A distância (4 quilómetros) foi feita em 47 minutos num ritmo confortável, mas intenso, e todos os obstáculos realizados com êxito. Foi divertido e o "meu campeonato" de superação pessoal foi conquistado. Pura diversão! No fim, sorriso nos lábios e lembranças que vão seguir-me na vida. Curiosamente, o momento que mais me marca nesta corrida não foi desenhado por mim. Pertence a outras duas personagens que entram nesta parte da história. Tive a sorte de testemunhar a chegada do Bruno Sousa com o filho (ambos com pulseira). Para quem não sabe, o "bruninho" é um rapaz, de 13 anos, cheio de energia e que – como o pai -, adora e faz Corridas de Obstáculos. O "bruninho", garoto/atleta de sorriso fácil cortou a meta em lágrimas nos braços dos pais, após a sua brilhante conquista. Por momentos, os berros do speaker, o frenesim em torno do evento, o vento frio e a lama já não incomodam, abafados por aqueles abraços!

O segundo dia, na prova principal, com quinze quilómetros e 75 obstáculos, foi difícil. Estava muito frio, chovia, havia lama até ao pescoço em alguns locais, e tivemos de dar saltos para lagos com água gelada e percorrer caminhos em barro que sugavam as sapatilhas. As condições climatéricas marcaram este dia em que 65% dos atletas não conseguiram concretizar todos os obstáculos (como eu). Dito isto, lá fui passando, com elevado esforço, as trincheiras, as valas, os sacos, as correntes, as barreiras, os saltos, as suspensões, as cordas… ofegante e de braços pesados, chego às barras paralelas e, ali, fiquei 25 minutos… O relógio marcava 2h40m!!! Estava gelado, as mãos tremiam, e ficar parado - à espera que a força nos braços regresse -, não ajuda. Entreguei a pulseira, porque achei que podia perder o controlo do corpo (naquela altura, ainda não tinha noção do que estava a acontecer noutros locais, já com dezenas de desistências em hipotermia). Saí dali a correr, com a esperança de aquecer. Não aqueci! A paragem nos obstáculos - que não fazia à primeira -, repetiam a sensação que sentira minutos antes nas barras. Até ao final, a falta de força impediram-me que fizesse outros obstáculos "Ninja Rings" e o "Skitch" e, por opção, nem tentei o "Dragons Beck" (já a pensar na prova do dia seguinte em equipas). Não escondo: passei a meta, após 3h20m, com a clara sensação de frustração que carreguei durante os três últimos quilómetros por ter sido desqualificado. O que me "aqueceu" e revigorou, definitivamente? Perceber que, apesar daquelas condições, alguns portugueses concluíram a prova com pulseira no braço, ultrapassando, assim, todos os obstáculos: o Gonçalo Prudência (melhor português), Duarte Alves, Sérgio Ramos, Paulo Barbosa, José Carvalho. Que brutalidade! Foram todos fantásticos!!!!! Mas não me interpretem mal! Se soubesse que era fácil, nem tentava, se imaginasse que era um passeio no parque, nem começava, se me dissessem que era confortável nem ponderava fazer. Não tenho dúvidas de que todos os que, desta vez, saíram desiludidos, vão regressar mais fortes!!!

No terceiro dia, realizou-se a prova por Seleções. Portugal esteve representado com quatro equipas (cada equipa tem três atletas). Para mim, um dos momentos mais gratificantes e memoráveis (entre tantos outros). A prova dividida em três partes, começou com a minha corrida em "SPEED" – que durou 28 minutos -, a tentar não desiludir o Pedro Palma e o Rui Cunha, que me esperavam mais à frente. Preocupação constante: "stairway to heaven", obstáculo que tinha passado, sem problema, no dia anterior, mas quando os braços ainda respondiam bem. Passados 28 minutos e 22 obstáculos concluídos (incluído a escada), entreguei o testemunho, ofegante, mas feliz. Depois, foi sinfónico!!! O Rui Cunha, no percurso de FORÇA, e o Pedro Palma, na TÉCNICA, a "fluir" no percurso enlameado até nos juntarmos e terminarmos em 1h05m. Foi a prova de que mais gostei. Deu para tudo: para me sentir minúsculo, quando percebi que alguns atletas voavam à minha frente, em vez de correr, para controlar a ansiedade e o medo de falhar, mas, principalmente, para saborear a conquista em equipa, sem medo de assumir fragilidades, perante o Rui e o Pedro (atletas bem mais fortes do que eu). Cheguei à parede a achar que já tinha dado tudo, mas, depois, percebi que não. Aquele obstáculo mostra-nos que não! Obrigado, Rui e Pedro!!!

O Campeonato do Mundo OCR é um desafio exigente, as Corridas de Obstáculos são assim. Estas provas são feitas a pensar em guerreiros, são esculpidas para os inconformados, satisfazem os sedentos e alimentam aqueles e aquelas com fome de viver, que se nutrem de conquistas pessoais! Uma Corrida de Obstáculos lembra-nos que nem sempre os vencedores ganham e que devemos treinar, física e mentalmente, investindo na nossa resiliência, praticando a capacidade de superar adversidades e transformar momentos difíceis em oportunidades de aprendizagem, crescimento e mudança.

Miguel Fernandes
Jornalista

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