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Mergulhar uma criança em água fria para que páre de chorar?

Num vídeo, a influenciadora digital Joana Mascarenhas contou que mergulha a filha, de três anos, em água fria, para acabar com "birras", uma postura que tem originado polémica e merece a reflexão da psicóloga Tânia Correia.

Psicóloga, mestre em Psicoterapia Cognitiva-Comportamental na área da infância e adolescência / OPP: 24317
  • 16 jul 2023, 18:54
Criança a chorar
Criança a chorar

Neste vídeo, podemos ver uma criança ferida, que agora é adulta, a ferir outra criança. Esta visão de a criança ter manhas, ser provocadora, fazer de propósito para incomodar, vem da forma como os adultos à nossa volta olharam para os nossos comportamentos. Claramente, esta pessoa cresceu a achar que os adultos e as crianças são de equipas opostas e que as últimas passam a vida a tentar ganhar, com aquele jeito maquiavélico que lhes é característico (ler na ótica da pessoa). Entendem porque temos de desconstruir estas crenças? Se não o fizermos, criamos espaço para estas situações existirem.

Acompanho muitos adultos que foram esta criança que foi punida sem marcas físicas. Digo-vos, como psicóloga, que se fosse possível transformar marcas psicológicas em marcas físicas, iriam ver um corpo completamente ferido. Contrariamente, às marcas físicas, as marcas psicológicas não cicatrizam facilmente. Elas são feridas abertas cuja dor não passa e que interferem na maneira como a pessoa se sente em todo o lado: com amigos, no trabalho, com os filhos, consigo. Tudo é arrastado por estas feridas.

Uma criança que, a qualquer momento, pode ser atirada para a água fria, vai desenvolver ansiedade. Ela não sabe com o que contar e, por isso, vai precisar de estar com uma vigilância extrema para se preparar para o embate. Ela também deixa de confiar no mundo. Se quem mais a ama trata-a assim, qualquer outra pessoa pode magoá-la seriamente e, por isso, ela deixará de se entregar às relações à sua volta. Além disso, aprende, desde cedo, que quem supostamente a ama pode magoá-la. Irá crescer com uma visão que normaliza os maus-tratos (a maior abertura para relações tóxicas e violentas).

Não imaginam a quantidade de casos deste género que já acompanhei em que as crianças ficavam no quarto, a chorarem por dentro, a tentarem conter o choro. Outras ficavam sentadas à porta do quarto dos pais, sem eles saberem, pois estavam assustadas, sentiam-se perdidas, mas, para evitar a punição, não recorriam aos pais.

Ainda hoje, esses pais contam, com orgulho, histórias como a que vemos neste vídeo: desde aquela noite, a criança nunca mais a perturbou. Não perturbou o adulto, mas ficou perturbada. Algumas ao ponto de desenvolverem patologias psiquiátricas muito complexas. Ainda hoje, não conseguem chorar, riem-se imenso, de forma pouco ajustada, quando contam algo triste, pois o trauma alterou a maneira como processam a realidade para protegê-las da dor. E sofrem imenso com este desajuste.

Este relato começa com uma criança que sente imensa falta da mãe e, como tal, pede conexão. No fundo, a menina estava a dizer: "Mãe, senti a tua ausência, podes garantir-me que não me vais abandonar? Que não perdi o teu amor, que ainda estás aí para mim?" E a resposta foi punição, através de banhos frios repentinos, numa sensação de perda de controlo, de descrença em relação ao amor que a rodeia, de desproteção, de vulnerabilidade. A resposta, ainda que sem consciência disso, foi a de que, realmente, a criança está por si, tem de se regular sozinha, que não é compreendida, que, se pedir amor, é humilhada e magoada. O trauma é isto.

Há dias, falei-vos sobre como a maneira como olhamos para a infância e a quantidade de adultos feridos que temos abre portas a casos como o da Jéssica. Algumas pessoas ficaram chocadas, disseram que não tem nada a ver. Era isto a que me referia. Vejam como a maneira de ver a criança como um ser provocador leva um adulto a comportamentos graves. Sim, a menina não morreu fisicamente, mas, internamente, há partes que se vão perdendo e que, se o adulto estiver mais desregulado, podem realmente levar mesmo a um fim. É urgente mudarmos estas crenças, curarmos as nossas feridas, percebermos que não temos de perpetuar o que nos foi feito (e aos nossos pais, aos nossos avós, por aí fora).

A punição vai sempre resultar, mas resulta pelos piores motivos possíveis. Aquilo que a criança punida aprende vai transformar-se em vozes que estarão com ela ao longo da vida. "Não vales nada". "Só fazes porcaria, devias apanhar mais". "Ninguém gosta de ti, não mereces que gostem". São apenas algumas das vozes internas que se desenvolvem e que estarão sempre a incomodar a criança no futuro. Algumas crianças serão mais passivas, outras mais agressivas, nenhuma será capaz de se expressar e regular de forma saudável. A punição não condena apenas o comportamento, ela condena a criança para a vida toda.

Outro ponto que precisa de ser falado: enquanto pais, se estamos cansados, desgastados, precisamos de pedir ajuda e quem está à volta dos pais tem de levar muito a sério estes pedidos e os sinais de desgaste. Todos podemos fazer prevenção de situações em que os pais atingem o limite. Em termos sociais, todos precisamos de observar o comportamento da criança e levar a sério os sinais que esta dá de que algo se passa e, na dúvida, questionar os pais ou até agir, denunciando.

Vocês podem quebrar o padrão! Vocês podem ser o adulto que vos faltou!

[A propósito deste tema, uma publicação escreveu o título "Parar uma birra com um mergulho em água fria? Não é o melhor método, dizem os psicólogos"]. Não é o melhor método?

Não, não se trata de existirem métodos melhores do que este, trata-se de este ser uma forma de maus-tratos!

Gostava mesmo que fosse apenas uma escolha menos feliz de título, iria ignorar e evitaria chatear-me (e eventualmente tornar-me persona non grata), mas é impossível! Num momento tão delicado em que a informação que chega ao público condiciona aquilo que se irá retirar desta situação, não posso permitir que noções pouco saudáveis sejam passadas.

As "birras" (designo por expressões intensas de necessidades - EIN) não são uma forma de a criança "medir forças" com os pais, contrariamente ao que aqui é dito. Afirmar-se isto é perigoso, quando temos de base uma situação em que a pessoa alega que a criança estava "a medir pilinhas" com ela. Vamos corroborar esta ideia de competição entre pais e filhos? Também aqui parece que alguém tem de ganhar, o que não é verdade.

E antes que digam que cada pessoa tem a sua opinião, acima das opiniões estão as evidências, sobretudo as científicas, que são concretas e claras. As neurociências já nos mostraram que, numa EIN, a criança está a sofrer! Ela não está a querer medir forças, nem a tentar manipular-nos (o cérebro está longe de ser capaz disso), ela está desorganizada internamente, com necessidades que não consegue processar e, consequentemente, expressar.

Neste artigo, aconselha-se que nestas situações os pais façam "um grande plano com os olhos, de modo a que a criança tenha medo daquele olhar". Reparem, a criança já está assustada, ela sente o coração a bater depressa, o corpo inquieto, as suas emoções e os seus pensamentos desregulados, ou seja, ela numa EIN acredita mesmo que está em perigo. E o que fazemos nós? Abrimos muito os olhos para que sinta ainda mais medo! Num momento delicado, provamos-lhe que, além de não poder contar connosco, ainda se deve proteger de nós, pois somos mais uma fonte de ameaça para ela.

Se a criança tiver uma EIN porque está com fome ou sono, abrir muitos os olhos para a intimidar ajuda em quê? Se tiver profundamente triste ou com saudades, não conseguindo comunicar isso pela imaturidade do seu cérebro e, se iniciar uma EIN, sendo este cenário muito comum, abrir os olhos para que nos tema irá ajudar em quê? O mesmo se aplica a todo um leque de outras necessidades que podem existir. Que sentido faz punirmos ou recriminar-mos, através do olhar, uma expressão imatura (dada a idade) de algo que a criança precisa? Só a iremos ensinar a reprimir-se, não a expressar-se de melhor forma.

É tempo de pararmos de ver nas crianças más intenções, de nos libertarmos do termo "birras" como algo intencional e planeado para "medir forças" (ou pilinhas) e de acharmos que a criança retira prazer destes processos.

Perante uma EIN, a criança precisa de se sentir segura e protegida. Isso não significa que tenhamos de aprovar todos os comportamentos - a seu tempo iremos mexer neste ponto. Primeiro, precisamos de a ajudar a regular-se, mostrar-lhe que estamos ali para ela, que somos uma fonte de calma e não de perigo. Depois deste processo, haverá espaço para trabalharmos o comportamento, validarmos a necessidade sem termos de corresponder aos desejos que possam existir (posso validar a vontade de comer gelado antes do jantar, sem efetivamente o dar).

Educar não é uma competição entre as partes envolvidas, nem entre quem abre mais os olhos para recriminar.

Estamos juntos.

Tânia Correia
Psicóloga, mestre em Psicoterapia Cognitiva-Comportamental na área da infância e adolescência / OPP: 24317

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