TVI

São José Correia fala sobre novo desafio e afirma: "Não podemos deixar que o medo nos governe"

Em entrevista à SELFIE, a atriz São José Correia fala sobre o espetáculo "O medo devora a alma", cuja estreia está marcada para a próxima sexta-feira.

Aproveitando o título do espetáculo, o medo devora a alma?
[Risos.] Inclino-me a acreditar que sim, até um certo ponto. Na verdade, o medo, instintivamente, é uma coisa que nos protege, porque, se nós não tivéssemos medo, faríamos muitas asneiras. Até a uma determinada altura, o medo faz sentido. Mas, se nos deixarmos devorar por esse medo, ficamos tolhidos e não fazemos nada da vida. Quando deixamos que o medo se alastre, limita-nos bastante.

Como é consigo?
Primeiro, assumo quando tenho um medo. Porque também é importante assumir os medos. Devemos assumir o medo, integrá-lo na nossa vida e agir com cautela. Mas não podemos desistir das coisas, não podemos deixar de lado os nossos objetivos e as nossas lutas. Não podemos mesmo deixar que o medo nos governe, porque, se deixarmos, passamos a vida fechados em casa, para nos protegermos, e não fazemos nada. Não podemos ter medo do sofrimento, na verdade. Porque o sofrimento é inerente à condição humana. Temos de aprender a viver com ele e não negá-lo.

E que espetáculo é este?
É uma adaptação do filme com o mesmo nome do [Rainer Werner] Fassbinder. O exercício, aqui, foi colocar o filme em cena, porque nós não fizemos uma dramaturgia para teatro. Estamos a trabalhar sobre o próprio guião, até porque o texto só existe em guião. O que é fundamental neste espetáculo é a solidão. Aliás, os dois protagonistas, a Emmi e o Ali, são duas personagens de mundos totalmente diferentes e de faixas etárias completamente diferentes, mas que se encontram. É um encontro feliz e eu creio que é por causa da solidão, porque são duas pessoas muito solitárias, que se encontram na solidão e que conseguem dar a mão um ao outro. No entanto, a peça não fala só sobre a solidão destas duas pessoas. A peça fala na solidão em geral, da nossa condição humana, porque a sociedade interfere bastante na relação entre estas duas personagens. O que percebemos é que todos estamos solitários, com medo da diferença.

Onde entra Barbara, a personagem que interpreta?
A Barbara é a dona de um bar, onde só vão praticamente marroquinos, entre os quais o Ali. Lá, eles estão, de alguma forma, protegidos da sociedade alemã. Isto porque a peça passa-se em Munique e a relação entre imigrantes e alemães é muito difícil. Eles são totalmente ostracizados, na verdade. Portanto, este bar existe enquanto refúgio destas pessoas, que não estão totalmente integradas na sociedade. A Barbara, que também é um ser totalmente solitário, acaba por ser um bocadinho diferente na história, porque ela interfere na vida do Ali e na vida da Emmi mas nunca os maltrata. Na verdade, é provável que a Barbara seja uma das pessoas mais bonitas desta história, porque não tem juízos de valor - nem sobre a Emmi, nem sobre o Ali.

É parecida consigo?
Nesse sentido, sim. Tento fazer o exercício de evitar, a priori, o juízo de valor. Temos de ter muito cuidado quando avaliamos e julgamos as outras pessoas, porque não as conhecemos. E, muitas vezes, só vemos o comportamento das pessoas, mas não sabemos a causa. Não sabemos até que ponto é que elas estão feridas pela vida, não sabemos as suas ambições, não sabemos as suas tristezas... E acho que a Barbara está muito perto disso. Eu faço duas personagens: a Barbara e a merceeira. O elenco é muito grande - somos 12 ou 13, atores. Temos os dois protagonistas, a Emmi e o Ali, e todos os outros desdobram-se em várias personagens que correspondem à sociedade. O Fassbinder não quer falar da relação de amor entre os protagonistas. O Fassbinder quer falar das consequências desse amor na sociedade que os rodeia. Portanto, todos nós representamos as várias facetas da sociedade: os filhos, as colegas de trabalho, as vizinhas, a merceeira e o merceeiro...

Esta é uma história que se debruça sobre os julgamentos que as pessoas fazem dos outros e é uma história sobre imigrantes. É, portanto, muito adequada aos dias de hoje...
Totalmente. Este é um texto de 1972, mas é um texto que poderia ter sido escrito hoje.

Isso significa que não melhorámos nada em 50 anos?
[Risos.] Pois... Acho que não. Na verdade, acho que não evoluímos tanto como achamos que evoluímos.

Mas estamos melhores ou piores do que há 50 anos?
Quero acreditar que estamos um bocadinho melhores. Mas não o suficiente.

Já tinha visto o filme?
Já, já.

E reviu-o agora?
Voltei a ver quando me convidaram e voltei a ver já em ensaios. Confesso que, agora, já não vou ver mais. O filme serviu como ponto de partida e como inspiração, mas agora o texto é nosso. O espetáculo é outro objeto artístico.

A poucos dias da estreia, está nervosa?
Ah, sim, estou um bocadinho tensa...

É a primeira vez que trabalha com Rogério de Carvalho, o encenador do espetáculos?
Não. Aliás, só aceitei este trabalho precisamente por ser com o Rogério de Carvalho. Ele é o meu único mestre vivo.

E é daquelas atrizes que gosta de ser dirigida?
Gosto de dirigir e também gosto de ser dirigida. Então pelo mestre... Ainda noutro dia, tivemos uma pequena discussão, porque ele estava a pedir-me uma coisa numa cena e eu discordei e argumentei com ele. Saí do ensaio convencida de que tinha razão. No dia seguinte, percebi que ele é que tinha razão. E, mais uma vez, penso: "Ok, isto de discutir com o mestre não vale a pena, porque tu discutes com o mestre só para perceberes que ele é que tem razão" [risos]. E ele tinha razão! Ele estava cheio de razão! Tenho muita confiança nele.

 - Sobre a peça

"O medo devora a alma" vai estar em cena, entre 28 de outubro e 27 de novembro, no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada - de quinta-feira a sábado, às 21 horas, e quartas-feiras e domingos, às 16 horas.

Além de São José Correia, integram o elenco Catarina Campos Costa, Cláudio da Silva, David Pereira Bastos, Júlio Mesquita, Laura Barbeiro, Lavínia Moreira, Maria Frade, Miguel Eloy, Pedro Fiuza e Teresa Gafeira. A encenação é de Rogério de Carvalho.

Relacionados

Patrocinados