Psicóloga Tânia Correia sobre provas de aferição: "Se não respeitam a infância, nem a aprendizagem, digo não!"

Numa série de artigos de opinião, a psicóloga Tânia Correia faz uma crítica ao Ministério da Educação, a propósito das provas de aferição.

Psicóloga, mestre em Psicoterapia Cognitiva-Comportamental na área da infância e adolescência / OPP: 24317
  • 17 abr 2023, 18:34
Tânia Correia
Tânia Correia

Provas de aferição no segundo ano é desnecessário, provas de aferição no segundo ano feitas através do computador é absurdo!

Hoje, a Leti [filha da psicóloga Tânia Correia] terminou a tarde completamente frustrada (felizmente, resolvemos rapidamente, pois existe um trabalho emocional feito). Uma das tarefas que tinha para casa era o treino de uma prova de aferição na escola virtual.

A dada altura, percebeu que ainda faltavam imensas perguntas e que o tempo não iria chegar. Reparem que não se trata de um teste de "verdadeiro ou falso", várias questões exigem que a criança escreva como chegou à resposta, o que, no caso da matemática, implica explicar os vários cálculos e o respetivo motivo. Para isso, a criança tem de usar o teclado do computador, colocar acentos, recorrer ao Caps Lock.

A Leti é uma criança que não usa tecnologia. Não usa tablet, nem mexe em telemóveis. O que ela gosta mesmo é de explorar o mundo, de olhar para um objeto simples e transformá-lo em 1000 outros e criar brincadeiras a partir daí. Também gosta de escrever com as respetivas canetas. De repente, é-lhe exigido que escreva bem e depressa no computador.

"Então, eles têm de se preparar". Preparar exatamente para o quê nesta idade? Para escreverem declarações a computador, pois podem precisar? Uma carta informatizada para o condomínio do prédio? Um e-mail para a companhia da água? Eles não precisam de nada disto. Muitos de nós tivemos acesso à tecnologia na nossa adolescência e estamos super adaptados, simplesmente porque a mesma é criada de maneira a que seja intuitiva.

O que não é intuitivo é pegar em cérebros ainda imaturos e forçá-los a ajustarem-se às exigências do mundo adulto, com provas em que há pressão do tempo, por via informatizada, e com conteúdos altamente abstratos. Sujeitar precocemente a criança para aquilo que não encaixa no respetivo mundo interno só provoca desconforto, não gera "preparação".

"Mas eles conseguem". Claro que podem conseguir, mas qual é o preço? O preço é desvirtuarmos aquilo que devia caracterizar a infância: a curiosidade, o gosto por aprender, a atenção ao detalhes (em vez da pressa), a necessidade de tocar e receber estímulos concretos (em vez de tocar em ratos e observar ecrãs).

Não estamos a preparar as nossas crianças para o futuro, estamos a estragar-lhes o presente e a fazer com que cheguem ao futuro desmotivadas, sobrecarregadas e emocionalmente desconectadas.

Texto de 3m’s - Menina, Mulher, Mãe (publicado originalmente a 7 de abril)

O Ministério da Educação não está a proteger a infância dos nossos filhos, expondo crianças com sete ou oito anos a provas de aferição feitas a computador, em que o ritmo é desrespeitado (o tempo é ridiculamente curto para a quantidade de exercícios), através de meios que não são familiares para a criança (escrever, usar acentos e pontuação, tudo através do teclado) e com um grau de exigência desajustado (os exercícios são muito difíceis e ainda pedem às crianças que justifiquem as respostas), o que gera stress e frustração.

Erikson, um autor que se dedicou a estudar os desafios que existem em cada fase da nossa vida e o respetivo impacto, percebeu que a grande conquista nos primeiros anos de escola é a indústria (nesta teoria, significa a criança sentir que é capaz). Os primeiros anos de escola servem, sobretudo, para a criança construir uma imagem de si enquanto aluno - sou capaz ou não? - e para criar gosto e curiosidade pela aprendizagem. Sujeitar a criança a um cenário em que se sentirá pouco eficaz é gerador de ansiedade e contribui para uma sensação de fracasso que a pode acompanhar e desmotivá-la nos anos seguintes (sobretudo, porque não se trata só da prova em si, mas de toda a preparação nas escolas, que começa meses antes).

A única forma de conseguirmos mudar a maneira como o Ministério da Educação tem vindo a tratar as nossas crianças é, enquanto pais, tomarmos uma atitude. Qual? Não levarmos os nossos filhos no dia das provas de aferição para que haja uma abstenção em massa (as provas não são obrigatórias).

Se vos faz sentido, sensibilizem outros pais. Os nossos filhos não se conseguem fazer ouvir, mas nós podemos - e devemos - ser a sua voz! Chega deste escalar de desrespeito por uma fase de vida - a infância - que tem repercussões na vida toda.

Texto de 3m’s - Menina, Mulher, Mãe (publicado originalmente a 10 de abril)

Ontem [dia 11 de abril], liguei para o Ministério da Educação, a propósito das provas de aferição.

Estas só são obrigatórias, se a criança estiver na escola. Caso a criança falte, não precisa de uma justificação XPTO, falta como faltaria se lhe doesse a barriga ou estivesse maldisposta. A justificação médica só é necessária nos exames nacionais para os alunos os poderem repetir, no caso das provas de aferição, estas não precisam de ser repetidas, por isso, basta não comparecer.

Aproveitei também para perguntar qual é o propósito destas provas. De acordo com o Ministério da Educação, elas servem para termos acesso a um relatório sobre as capacidades dos nossos educandos.

Agora, pergunto-vos: acham mesmo que será numa prova longa, feita em tempo recorde, através de um meio que os miúdos não estão habituados a usar e no qual terão de escrever respostas longas (computador) que irão saber como vão os vossos filhos na escola? E o resto do ano serviu para quê?

Se a vossa resposta é não, então irão sujeitá-los ao desconforto exactamente para quê? Para corresponder às expetativas de um sistema que vê mini-adultos em vez de crianças e que as leva a passar por uma situação de stress, porque acha que é assim que devem ser avaliadas (mesmo tendo a classe dos professores contra de forma generalizada)? Que perante a passividade dos pais vai aumentado a exigência dos programas de ano para ano? Que gera conteúdos sem qualquer respeito por aquilo que é o desenvolvimento infantil? Que só vê métricas e ignora o equilíbrio psicológico das crianças?

Reflictam e escolham com consciência.

Texto de 3m’s - Menina, Mulher, Mãe (publicado originalmente a 12 de abril)

Tânia Correia
Psicóloga, mestre em Psicoterapia Cognitiva-Comportamental na área da infância e adolescência / OPP: 24317

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