Entrevistas

Luísa Castel-Branco fala sobre livro de memórias: "Foi uma autêntica catarse"

Quando eu era pequenina é o mais recente livro de Luísa Castel-Branco, que revisita a infância e dá a conhecer pormenores da sua vida que nem mesmo os filhos da escritora sabiam. "Foi muito difícil de escrever", contou Luísa Castel-Branco, numa entrevista exclusiva à SELFIE, na qual revela, ainda, como está a viver estes tempos de pandemia.

O que a motivou a escrever o livro Quando eu era pequenina?
A primeira razão foi o meu editor, que me desafiou a escrever uma trilogia e falar sobre a infância, o que é a infância… começou por aí. Depois, ele disse-me: 'Era giro ter coisas relacionadas consigo.' E, vai daí, obviamente, que ficava mais interessante.

Foi fácil escrever sobre a sua infância?
Não foi nada fácil, foi muito difícil. Foi um exercício que demorou muito tempo, porque foi uma autêntica catarse. Escrevi durante a pandemia, entretanto, a minha mãe morreu naquela altura, portanto, acabou por ser, surpreendentemente, um exercício de revisitar a infância e, ao mesmo tempo, procurar aquela paz interior de que precisava. Foi uma catarse, sem dúvida nenhuma. Foi muito difícil de escrever.

O que tem sido mais difícil durante esta pandemia?
A solidão e uma falta naquilo que, para mim, é o mais importante, que é o contacto com os meus filhos e os meus netos. Acho que nós, portugueses, somos um povo de abraços e beijos - nós, os espanhóis, os italianos, de alguma forma, os gregos, somos muito diferentes do resto dos países da Europa. Somos realmente latinos e isso faz-nos muita falta. Recebo imensas mensagens de pessoas mais velhas que dizem: "A solidão também mata, porque não vejo a minha família há não sei quanto tempo." É uma sensação horrível. Isto, também, sem dúvida, contribuiu para a escrita deste livro, porque foi uma circunstância muito especial em que o escrevi. Enquanto ia escrevendo aquilo que estava a ver, estava a olhar para as coisas com a idade que tenho hoje e aquilo que não foi uma infância feliz. Aconteceu-me quando cheguei ao fim do livro, compreender os meus pais e aceitar isso de uma forma que nunca tinha acontecido. De uma forma muito mais madura, pois acredito que eles fizeram o que puderam e todos nós temos limitações. Portanto, tive uma acalmia, uma paz dentro de mim que realmente foi muito boa… Custou muito, mas foi muito bom.

Entretanto, também teve de lidar com a morte da sua mãe...
Sim, foi complicado. O sofrimento que ela teve durante anos, o facto de ter perdido a consciência… a Alzheimer e a demência, às tantas, as pessoas têm momentos em que estão lúcidas e esses momentos foram horríveis, foram dois ou três anos horríveis, porque, nesses momentos de lucidez, ela tentava falar e não conseguia, foi muito doloroso. Depois, a morte, durante a pandemia, esta coisa terrível de não nos podermos despedir verdadeiramente das pessoas, tudo isso contribuiu para que este livro fosse tão pessoal.

"Foi como fazer uma terapia de sentimentos e lágrimas", palavras suas...
Sim! Escrevi, escrevi… Houve muita coisa que deitei fora, porque são memórias, portanto, temos que ser muito cuidadosos quando envolvem outras pessoas. São outras pessoas que têm a sua vida, embora tenham tocado na nossa vida, mas isso exige um cuidado muito grande. Dei por mim a escrever coisas que, depois, retirei, mas isso que disse é absolutamente verdade e, no fim do livro, eu tinha feito uma psicanálise e tinha encontrado aquela paz de que precisava. Houve, também, uma coisa que eu só realizei depois, que é o facto de ter visto o processo todo da minha mãe, do Alzheimer, da demência… fez-me pensar que gostaria muito que os meus netos soubessem como era Portugal, quando eu era miúda. Esta realidade foi a minha realidade, foi há mais de 50 anos e aquilo que eu quis deixar foi para eles, um dia, quando tiverem idade, como é óbvio, perceberem como é que era a vida. As mensagens que recebo das pessoas da minha geração é que se reveem muito. Para as pessoas mais novas isto é tudo uma coisa estranhíssima.

Mas muito do que descreve não é uma realidade assim tão longínqua, principalmente se pensarmos em zonas do interior do país.
De facto, em Portugal - essa é uma das criticas que faço -, as pessoas que falam, os comentadores, acham que Portugal é Lisboa. Não têm a mínima noção do que é o Portugal real. Hoje, a realidade do interior está muito próxima de coisas que estão aqui (no livro), sem dúvida nenhuma. Tive a sorte, por causa da política, de percorrer Portugal, de lés a lés, e descobri isso e percebo que haverá muitas mulheres, hoje em dia, que continuam a viver, com as devidas diferenças, uma realidade muito paralela a esta. Muita gente diz: "Esta é a minha realidade." E isso demonstra bem o quanto estamos a anos luz de as mulheres terem os mesmos direitos que os homens, o que é uma contradição enorme. Enquanto que, numa grande cidade, há uma parte que vive de uma forma aberta, as adolescentes, as mulheres mais novas, no resto do país, as pessoas continuam assim e, ao verem esta discrepância, ao lerem o livro, perceberam que esta é a realidade delas. Outra surpresa são as pessoas mais velhas, que me dizem: "Mas eu vivi no interior e isto era a minha vida. Eu pensava que Lisboa era diferente." Mas não! Era exatamente assim. Do ponto de vista sociológico, para mim, é muito interessante ver esta realidade.

Outra das suas frases marcantes é: "Senti-me uma carta fora do baralho, a vida toda". Pode explicar melhor esta ideia?
Eu tenho uma rebeldia interior, se isso é fruto da minha infância ou se é uma característica minha, não sei. As pessoas têm que me explicar o porquê das coisas e, ao longo de toda a minha vida, sempre fui diferente das mulheres da minha geração, mas completamente diferente! E verifiquei isso depois de me separar e ficar com os filhos, na forma como os educava, da minha relação com as outras pessoas, senti-me sempre uma carta fora do baralho. Nunca tive paciência para certas coisas… Antes de me separar, a conversa das mulheres num evento social era a mesma: a educação dos filhos, as empregadas, etc. Eu, invariavelmente, estava sempre com o grupo dos homens, a conversar sobre política, e eram essas coisas que verdadeiramente me interessavam e, por isso, nunca fui uma mulher com a qual as outras mulheres se sentissem confortáveis, de forma nenhuma.

Mas em que altura da sua vida percebeu que "ser uma carta fora do baralho" era um trunfo a seu favor?
Há coisas que as novas gerações fazem muito melhor e têm mais informação e melhores formas para perceberem as coisas. Eu senti-me sempre muito mais infeliz, no sentido de que estava a fazer alguma coisa diferente, por estar sozinha sempre. Essa sensação de carta fora do baralho contribuiu, sempre, para uma solidão enorme, nunca foi uma coisa que achasse que era positiva. Só mais tarde, quando os meus filhos cresceram - o crescimento deles foi horrível, porque eu era julgada - é que percebi que tinha sido muito positivo ser uma carta fora do baralho. Aí, sim, antes disso, não! E houve muitas vezes em que tentei ser uma senhora bem comportada ou aquilo que a sociedade esperava de mim, mas não consegui mesmo.

E quando era pequena, o que sonhava ser?
Sonhei, sempre, ser mãe! Havia duas coisas na vida que queria: ser mãe e escrever. Toda a vida, escrevi. Com 11 anos, escrevia tudo. Era uma necessidade. Na minha geração, era muito normal escrevermos os nossos diários, mas eu tinha uma necessidade enorme de escrever e, por isso, não era coisa que, naquele tempo, eu pudesse sonhar vir, um dia, a fazer. O meu pai tinha sido presidente do Sindicato dos Jornalistas, eu vivia em Alfragide, na rua da imprensa, que era só de jornalistas, e quando disse ao meu pai que queria seguir Jornalismo, ele, obviamente, cortou-me as asas. Naquela altura, não havia forma de estudar isso, sendo que eu era muito má aluna, mas isso vai ficar para o próximo livro. [risos]

Então, como acaba a escrever na imprensa?
Foi através da Madalena Fragoso, cujo pai era amigo do meu pai. Eu escrevia uma página dedicada à mulher no Semanário, quando o professor Marcelo Rebelo de Sousa era diretor. Depois, participei na fundação da Máxima, inventei o nome Máxima! Foi uma experiência fantástica, eram umas coisas que ia fazendo, não era mais do que isso.

E quando se estreia na Literatura?
O primeiro livro que escrevi foi a convite da editora. Comecei a escrever no jornal Destak, gratuitamente, por minha iniciativa. Há 18 anos que escrevo lá gratuitamente e a editora pegou nos textos e acabou por fazer aquele primeiro livro, mas nunca achei que poderia fazer disto alguma coisa que não fosse participar em revistas ou jornais. Já o primeiro romance que escrevi foi porque estava a escrever uma história e fui escrevendo, escrevendo e, como tinha mais de 200 mil caracteres, enviei para o editor, que me disse: "Vamos ter romance, continue a escrever." E foi assim.

Mas quando é que passou a assumir o título de escritora?
Isso aconteceu há pouco tempo. Agora, para o resto da nossa vida, as coisas são vividas pré-Covid e Covid. Aconteceu há muito pouco tempo, na era pré-Covid, para aí há dois anos. Já tinha publicado 11 livros e resolvi, definitivamente, que a minha profissão era escritora, embora, obviamente que, sendo escritora, não ganho o suficiente e tenho de trabalhar noutras áreas.

A quem costuma mostrar o que escreve?
Não mostro nada do que estou a escrever. A primeira pessoa a ver o que eu escrevo é o meu marido ou união de facto, como a gente quiser, porque estamos juntos há 26 anos, mas em pecado [risos]. Mostro-lhe a ele e ele é, sem dúvida nenhuma, a pessoa que mais puxou por mim, que mais acredita, que diz "está ótimo". Quando eu mostro, depois, quer ler o que vem a seguir. É a única pessoa e, depois, envio, imediatamente, para o editor.

Também lhe mostrou este livro?
Mostrei parte, não mostrei até ao fim. Eu já tinha ultrapassado todos os timings do editor e, ao mesmo tempo, aquilo era muito custoso de escrever e ele [o marido] percebeu que aquilo me estava a custar muito. Ele leu partes, mas, depois, quando cheguei ao fim, mandei para o editor e disse-lhe que ele lia, depois.

E como reagiram os seus filhos?
A única que leu o livro foi a Inês, aos outros ainda nem sequer lhes mandei. Depois, há as noras que lêem, os filhos é outra coisa... A maior parte do que está naquele livro, para não dizer quase tudo, os meus filhos não têm conhecimento nenhum e a minha filha Inês disse-me: "Olhe, mãe, ri-me, chorei e acho que o livro está muito bom. Parabéns!". E, depois, publicou um post… só pelo post que ela fez, o livro valeu 1000%! Ela escreveu qualquer coisa como: "Este livro é como um mapa para me conhecer melhor". Eu acho que é exatamente isso, no fim de contas, dei por mim, quando a minha mãe começou a perder a lucidez, a ter um medo horrível de que me acontecesse a mim e, aí, achei que queria que eles soubessem como é que era, o que é que era… tanto quanto se pode escrever, naquilo que implicamos na vida dos outros. E o facto de ela ter reagido, ter lido e ter sentido aquilo foi fantástico! O melhor de ter escrito este livro foi ter este espaço que eu precisava de ter para avançar na vida, dentro de mim, claro.

E os seus netos já leram?
Não. Só podia ter lido a que tem 16 anos, mas não. Acho que ainda não é a altura. Há-de ser, um dia, agora, não.

Qual dos seus filhos é mais parecido consigo?
O mais parecido comigo é o Gonçalo - o do meio - e, felizmente, tem dois irmãos a tomar conta dele.

Como é a relação com os seus filhos?
Eles conhecem-me muito bem, no sentido em que sabem que sou, como eles dizem, "dramática". Vivo as coisas no máximo. Tenho uma dependência absoluta do amor pelos meus filhos e, mais ainda, dos meus netos, e faço de polícia de mim mesma, para não estar constantemente a telefonar [risos]. Mas o mais gratificante, na minha relação com os meus filhos, é eles reconhecerem aquilo que foram as minhas dificuldades em todos os sentidos: financeiras, de saúde, de tempo… Hoje, enquanto adultos e enquanto pais, darem valor ao que fiz e perguntarem: "Como é que conseguiu?". Acho que isto é o que qualquer mãe ou pai deseja. Porque há tanta gente que se sacrifica uma vida inteira pelos filhos e eles não reconhecem isso. Com os meus filhos, não! Eles reconhecem, são agradecidos, preocupam-se comigo, ajudam-me… É uma relação única. Nós somos um clã e é difícil para as outras pessoas entrarem. Eu dizia, muitas vezes: eu e os meus filhos vivíamos no nosso mundo e visitávamos o mundo, em geral, nas horas de expediente e, depois, voltávamos para o nosso mundo, e isso foi uma coisa muito boa. Eu fomento muito o sonho. Das coisas mais criticadas de que eu fui - já estou a adiantar o próximo livro - foi nunca querer que os meus filhos tirassem um curso superior. Sempre quis que eles fossem felizes. Se fossem felizes a serem calceteiros, eram calceteiros. Obviamente, isto era uma coisa terrível, porque não pode ser. Não! Pode ser exatamente assim e é por isso que eles são as pessoas que são hoje, e por muitas mais razões. Tão ou ainda mais importante do que a relação que eles têm comigo e o reconhecimento que têm naquilo que foi a minha vida e a nossa vida é o facto de terem, entre os três, uma relação inacreditável. São os três de uma solidez, enquanto irmãos, que é impressionante. E isso é o que uma mãe quer. Um dia, vou partir e eles ficam os três, e o facto de terem aquela relação que têm, descansa-me.

De que sente mais falta nesta fase de pandemia?
Posso não ver os meus filhos e sinto muita falta, mas, então, os meus netos! Acho que esta coisa horrível que nos está a acontecer nos está a roubar anos de vida. Vi o meu neto Lourenço, pela primeira vez, com quatro meses. Não é através do FaceTime que ele vai ter uma ligação comigo, e eu não o estou a ver crescer. Com a Luisinha, a mesma coisa... ela, de repente, falava... As crianças, todos os dias, crescem e têm coisas novas… e aquilo que era a minha relação com os meus netos teve que desaparecer e os meus filhos têm imensa preocupação que eu, como sou doente de risco, esteja com os meus netos, porque andam na escola. Eu percebo-os perfeitamente, mas só quero que isto acabe. E como eu há tanta e tanta gente. É uma coisa terrível, é uma situação terrível, é, talvez - não falando da saúde e das pessoas que estão internadas - a pior coisa que há, porque cortam-nos os nossos mais importantes vínculos de amor que temos.

Como tem vivido esta fase?
Tenho uma doença auto-imune, agora, apareceu-me a segunda doença auto-imune. As minhas saídas de casa, basicamente, são para ir ao médico ou para ir à fisioterapia, e pouco mais do que isto. Há quem esteja muito pior do que eu, mas, obviamente, as doenças auto-imunes diminuem o sistema imunitário. Não tenho defesas ou tenho poucas defesas, posso apanhar qualquer coisa. Portanto, confesso que tenho medo. Não vou como devia à televisão, porque, obviamente, é importante promover o livro, mas eles já sabem, eu vou maquilhada e penteada de casa, vou para um camarim sozinha e saio diretamente para o estúdio. Isto é a antítese do que eu sou, porque, normalmente, onde chego, falo com toda a gente e faço um alarido enorme, mas, agora, é assim. Penso sempre: "É assim, porque eu quero que isto acabe e quero ver os meus netos." Não há nada mais importante do que isso.

Qual vai ser a primeira coisa que vai fazer quando debelarmos este vírus?
Já disse aos meus filhos, mesmo que os meus netos tenham que faltar à escola, eu vou pegar neles e vou buscá-los a todos, e cobri-los com beijos, fazer as maluquices que faço... eles chamam-me a avó maluca. É que nem quero saber, só os quero a eles! Juntá-los todos, beijá-los, abraçá-los… Era o que eu faria, sem dúvida nenhuma. Só quero que isto passe depressa!

E o que podemos esperar dos próximos livros?
O próximo volume é para falar, teoricamente, sobre a adolescência e o outro sobre a nossa relação com a velhice. Cada um deles muito difícil de escrever, porque exige a disciplina do cuidado de não envolver outras pessoas, a não ser mínimo necessário, e eu tenho a certeza de que, mais uma vez, vai ser uma psicanálise à minha vida.

Já tem data prevista para a edição do próximo livro?
Vai demorar algum tempo a escrever, porque, como disse, tenho de ter cuidado com as pessoas mencionadas. Não me quero comprometer, mas, teoricamente, deveria ser no próximo ano. Tudo depende. Acho que, hoje em dia, nós só podemos fazer planos para o próximo dia.

Como é o processo da escrita?
Começo sempre da mesma forma, que é na minha cabeça. Nunca vou para o computador e tenho uma folha em branco, porque só me sento no computador quando já tenho tudo alinhavado na cabeça. Depois, faço todos os erros possíveis e imaginários, porque escrevo de rajada. Graças a Deus que existe o corretor de texto, porque senão estava feita, porque continuo com dislexia e só releio quando já está muito adiantado [risos].

No último livro desta trilogia vai abordar a questão da pandemia?
De certeza absoluta! Espero e sonho que, quando vier o terceiro livro, isto seja só uma má memória. Gostava de saber o que vai acontecer às crianças, como é que isto as vai marcar, as crianças que andam de máscara… Vejo os meus netos, o dia todo, na escola, nos recreios, as crianças que nascem e crescem e já só vêem pessoas com máscara e isto vai, de certeza, marcar e muito. Portanto, se Deus quiser, quando escrever o terceiro livro, espero que isto seja só uma má memória, muito má. E, sinceramente, se nós, as nossas famílias e o mundo ficar igual, depois disto, definitivamente, somos todos malucos! É importante passar a valorizar aquilo que realmente conta na nossa vida e espero, sinceramente, que a gente aprenda alguma coisa.

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