Nacional

Carta aberta: luta de Ângela Ferreira inspira outras mulheres

Mais perto de cumprir o sonho de engravidar do falecido marido, Ângela Ferreira ajuda, agora, a dar voz a outras mulheres que lutam pela mesma causa. Conheça a primeira de três cartas abertas, divulgadas, em exclusivo, na SELFIE.

  • 28 out 2021, 16:19

Foi através da série documental "Amor Sem Fim", transmitida na TVI, que Portugal ficou a conhecer a história da luta de Ângela Ferreira para "engravidar do marido morto".

Agora, após o parlamento ter aprovado, no passado dia 22 de outubro, um novo decreto sobre a inseminação pós-morte, o desejo de Ângela Ferreira está mais perto de se cumprir. Contudo, a barbeira de Gondomar, de 33 anos, faz questão de afirmar: "Não é uma lei para mim, é uma lei para muitas mulheres."

Depois de ter sido contactada por outras mulheres na mesma situação, Ângela Ferreira revelou, à SELFIE, que gostava de criar um grupo de apoio ou uma associação para ajudar pessoas na mesma situação: "É uma ideia, mas são precisos meios, disponibilidade, entre outras coisas... Mas quem sabe, um dia! Vou amadurecer a ideia".

Agora, a viúva de Hugo Neves resolver ajudar a dar voz a algumas dessas mulheres e partilhou uma carta aberta, escrita por uma delas, que a SELFIE publica, em exclusivo, na íntegra.

Direito à Vida

Corria o ano de 2019, eu e o meu marido estávamos juntos há 12 anos, casados há cinco, juntos passamos pela faculdade, pela entrada no mercado trabalho, construímos a nossa casa, trabalhamos muito e, finalmente, sentíamos que tínhamos encontrado uma certa estabilidade e que estava na altura de acalmar e de dar o próximo passo…constituir a nossa família!

Durante esse ano, fomos falando sobre o assunto, cada vez essa vontade foi crescendo mais dentro de nós. Lembro-me que, em julho desse ano, fomos de férias e recordo-nos a passear de mãos dadas e eu dizia: "Para o ano, quando voltarmos, estarei enorme de grávida"… Regressámos e tratamos de procurar uma obstetra para iniciar o pré-natal, alterei a minha apólice de seguro de saúde para uma que melhor cobrisse as despesas que aí viriam de consultas, exames e parto. Tive a primeira consulta no fim do mês de agosto, fiz os exames e, quando regressei, já em setembro, a médica disse que estava tudo ótimo, que podíamos iniciar as vitaminas e começar, então, a tentar no final do ano. Mas, por altura desta segunda consulta, já a nossa vida tinha virado de pernas para o ar... O meu marido, durante o mês de agosto, começou a não se sentir muito bem e, no espaço dum mês, tivemos o diagnóstico de um cancro maligno, em estado avançado. Disse à médica que os nossos planos ficariam, por agora, guardados na gaveta, que iríamos fazer colheita de esperma para quando este pesadelo passasse podermos resgatar estes planos e continuar a vida conforme idealizávamos.

Não vou abordar muito a doença do meu marido, primeiro para não o expor, segundo porque me é difícil e terceiro porque não é o motivo desta minha carta.

Foi delineado um plano de tratamento para o meu marido em que não nos davam grandes expetativas de sucesso, mas a força dele dava-me esperança que, com ele, seria diferente porque ele era, sem dúvida, um fora de série. Chegámos ao fim de janeiro e tivemos a pior notícia, a doença havia-se espalhado ainda mais, mudaram o tratamento, consultámos outros médicos, corremos o país à espera que nos dissessem alguma coisa diferente, mantive o contacto com Navarra onde havíamos ido logo no início, mas todos diziam o mesmo. Entretanto, entramos em isolamento a meio do mês de março por causa da pandemia, que coincide com o agravamento do seu estado de saúde, as consultas passam a ser por telefone e parece que era sempre tudo a piorar. Entretanto, também no mês de março, tinha a televisão ligada e ouço o início da reportagem sobre o caso da Ângela e do Hugo, mudei de canal assim que me apercebi sobre o que era, quis afastar de mim a ideia de que poderia ficar na mesma situação da Ângela, mas, nos dias seguintes, lendo um pouco aqui e ali fiquei a saber da sua história, da lei e do que pretendia.

O tempo foi passando e o meu marido cada vez com mais dores, saíamos apenas para comer em casa dos meus pais e para tentar dar uma voltinha a pé, que, por vezes, o fazia sentir melhor. Chegámos ao início de maio, no dia em que foi fazer a TAC para ver como estava a doença (e embora as coisas estivessem visivelmente más, mantínhamos a esperança de um milagre), nesse dia, numa das nossas caminhadas, o meu marido disse-me: "Sabes, eu vi-te sempre com tanta certeza quanto a ter filhos e, por vezes, eu tive dúvidas, não se os queria ter, mas se seria um bom pai, se estaria talhado para isso. Mas agora eu sei, eu quero ser pai, eu quero ter filhos." Obviamente, o meu marido não me disse isto por dizer, ele era um homem inteligente e sabia que a doença estava a ganhar terreno.

Passado uma semana temos o resultado da TAC e a doença tinha crescido muito e estava espalhada. Novamente, numa das nossas caminhadas (que lhe custavam cada vez mais, às vezes não sei se as fazia para se sentir melhor ou para me fazer sentir a mim melhor), foi a minha vez de abrir o coração e dizer-lhe: "As coisas estão más e sabemos como vai terminar, mas não podemos continuar a viver assim, estes meses fomos absorvidos pela doença, temos que realmente viver o que resta, seja um ou dois anos. Vamos avançar para os tratamentos de fertilidade, vamos ter um filho, eu quero que tu me acompanhes nesta fase, eu quero que segures no teu filho, vamos continuar com os nossos planos e viver, passear, tentar aproveitar alguma coisa. Há aquele caso na televisão daquela rapariga e eu não sei, se te perco, eu não sei, se depois destes meses de luta, terei forças para continuar a lutar."

Fomos chamados, fizemos os tratamentos e ficamos com embriões. O que eu pedia para serem anos, transformaram-se em meses e, depois de num mês ter tido dois internamentos, o meu marido acabou por partir, tranquilamente em casa, rodeado de família e amigos, não sem antes me dizer que gostava de ter uma menina, que queria que o seu melhor amigo fosse o padrinho e de escolher o nome para a filha.

O nosso primeiro embrião, transferido naquela altura, não resultou, provavelmente, também, por eu não estar nas melhores condições físicas e psicológicas. Perguntaram-se se queria transferir o segundo de imediato e eu disse que não, não tive coragem, não estava preparada para mais perdas. Fui para a lista de espera e, passados oito meses, transferiram o segundo. Nesse período de tempo, tentei reencontrar-me, voltei ao trabalho, rodeei-me de família e amigos e, por vezes, também me isolei, mas a minha motivação para continuar foi sempre aquele embrião que ainda tinha. Fui a consultas de medicina geral para ver como era o meu estado de saúde, fui a consultas de ginecologia para perceber o porquê de não ter resultado com o primeiro embrião, tratei de mim para estar o melhor possível para quando me chamassem. Fazia uma boa alimentação, ganhei algum peso que tinha perdido e tentei estar o mais próximo possível do meu normal. Quando me chamam, fazem a transferência do embrião que estava criopreservado e resultou!

Estou a poucos dias de ter uma menina, parece que o destino cumpriu a vontade do meu marido e eu tratarei de cumprir as restantes. Escusado será dizer que, desde que engravidei, algo em mim renasceu, o meu marido faz-me falta, fará sempre, mas sentir que posso continuar com a minha vida conforme eram os nossos planos (mesmo que sem ele, mas quanto a isso não podia fazer mais do que fiz), sentir que tenho algum controlo sobre a minha vida, que posso continuar como eu quis, que posso honrar a sua última vontade e que, com a sua partida, eu não perdi tudo, isso deu-me e dá-me muita força para continuar. Parece que sem ele mais nada fazia sentido, não fazia sentido chegar a uma casa vazia, não fazia sentido estar com a família e amigos, porque o lugar dele estava ali vazio, não fazia sentido, porque ele não estava e tudo tinha ido com ele. Cheguei a dizer que, se não resultasse, eu teria que talvez emigrar, afastar-me de tudo o que me lembrava dele, quase que renascer. Felizmente, deu certo e tudo ganhou um outro sentido, porque era a nossa vontade e porque, de certa forma, um pouco do meu marido fica por cá. Não olho para a nossa filha como uma substituição do seu pai, muito menos como um prémio de consolação. A nossa filha foi desejada por ambos, já é muito amada por todos, família e amigos, que sempre estiveram presentes, e ela terá o seu lugar e a sua identidade, não se tratou de uma confusão ou de um plano B.

Quanto ao caso da Ângela e do Hugo, por que eu posso ter a minha filha e eles não?

Porque graças ao caso deles se ter tornado público e mediático nós percebemos que, se nada fizéssemos, eu iria ficar na situação da Ângela. Pudemos fazer tratamentos e ficar com embriões, que aos olhos da lei é permitida a sua transferência desde que haja uma autorização escrita do marido caso aconteça uma fatalidade. Nós não saberíamos de nada disto se a Ângela não existisse e por ela ter aparecido e contado a sua história ser-lhe-ei eternamente grata. A diferença entre nós é embrião ou esperma, o primeiro consideram vida e o segundo um conjunto de células que ainda não reproduziram um óvulo, mas, na verdade, a diferença está no tempo. A Ângela e o Hugo não tiveram mais tempo e isso é extremamente doloroso. A vida dela está em suspenso, que foi como eu me senti, enquanto esperava pela transferência do segundo embrião. A única coisa que ela quer é seguir com a sua vida, mas continuar conforme a sua vontade e que também era o desejo do seu marido. Por que é que ela não tem esse direito? Por causa duma visão estereotipada de família perfeita? Ela ajudou-me, está a ajudar outras mulheres em igual situação, ela também merece ser feliz!

Na realidade estamos a olhar pelo superior interesse de quem?!

Das mulheres que perdem os seus maridos depois de meses de luta e em que a única coisa que querem é ter o direito a decidir como querem continuar com as suas vidas? Não!

Dos maridos que partem e que, conscientes de que não estarão cá para acompanhar os filhos, expressam a sua vontade de ser pais? Também Não!

Dos filhos que nascerão? Porquê? Porque serão crianças filhas de mães solteiras? Mas, no nosso país, não é permitido que mulheres solteiras sejam mães através do recurso a dadores de esperma? Sim (e bem), mas então onde está a diferença? A Ângela não pode ser mãe solteira dum filho do seu marido com recurso ao esperma, mas poderia sê-lo se utilizasse o esperma dum dador anónimo? Em que medida seria isto olhar pelo interesse da criança? Quem pode afirmar que uma criança que nasça de um pai já falecido não será uma criança feliz e um adulto realizado? Uma criança que venha ao mundo depois de o pai ter falecido, através do recurso a tratamentos de fertilidade, utilizando o esperma do pai, saberá que foi uma criança desejada, que vem de uma relação na qual o amor prevaleceu. Não vai conhecer o pai, mas vai saber quem foi, vai saber o seu nome, ver fotografias, perceber se tem parecenças com ele ou não, e terá uma mãe que a amará, protegerá e tudo fará para que seja feliz!

A Ângela tem o direito a continuar a sua vida como deseja, o Hugo tem o direito a que a sua vida, de certa forma, continue e a sua vontade seja respeitada e honrada, e o filho deles tem o direito a ter uma vida repleta de amor.

Relacionados

Patrocinados