Faleceu, no passado sábado, dia 21, Fernando Faria, repórter de imagem da SIC durante mais de 20 anos. No Facebook, Bento Rodrigues prestou uma homenagem ao colega e amigo, recordando um conjunto de reportagens que ambos fizeram, no final da década de 90, em Timor-Leste.
"'Diz-me que gravaste isto, ca.......', gritei ainda a escorrer adrenalina. O Faria, com a calma que, por vezes, desesperava um repórter, sorriu com aquele sorriso que desarmava tudo. São as imagens do único tiroteio registado por uma câmara de televisão entre as milícias indonésia e os militares da força internacional da Interfet que, nos finais de 1999, libertava Timor-Leste da carnificina.
Numa crónica para a revista Visão, a partir de Díli, a jornalista Jill Jolliffe escreveria que esse foi 'o dia em que a SIC bateu a CNN', a única televisão que nos acompanhava naquela saída com os militares à fronteia com Timor indonésio. Mas o título não fazia justiça. Foi a astúcia de repórter de imagem e a serenidade debaixo de fogo que produziram as imagens que correram mundo e cravaram aquele momento na história. Foi o dia em que o Faria bateu a CNN", começou por recordar o jornalista, de 50 anos, na legenda de um vídeo dessa reportagem.
"Nesse setembro/outubro, éramos testemunhas e cronistas da história. Calhou-me o parceiro mais profissional e generoso. E humano. A humanidade do Faria foi maior do que nunca no dia em que acompanhámos Manuel Carrascalão na visita à campa do filho que tinha sido morto em casa pela fúria indonésia. Antes, quis passar pela casa onde nunca mais voltara, esventrada pelo ataque. O Faria gravou as imagens que não precisaram de palavras. Lembro-me do barulho da fita a rodar na câmara e a cortar o silêncio.
O Faria, a uma distância profissional, mas respeitadora, a documentar o horror que o mundo precisava de ver, mas sem invadir este homem vergado à perda de um filho e de si próprio. Já no cemitério, instantes depois de os joelhos deste pai tocarem a terra da campa do filho e de os olhos se desprenderem em lágrimas, pedi ao Faria para deixar de gravar, devia ser um momento íntimo. – Já deixei há uns segundos! – Já deixei há uns segundos!
O óculo da câmara não lhe cortou a sensibilidade, não o impediu de saber onde parar, talvez porque olhava frequentemente por fora do óculo, olhos nos olhos com a realidade, sem aquele filtro. No dia em que subimos ao coração da montanha timorense, para a reportagem do reencontro entre Xanana Gusmão e a guerrilha que liderara até ser preso, o Faria não se calou um segundo. O caminho todo à conversa com o dono da carripana que aceitou levar-nos ao destino. Eu, a planear reportagens mentalmente, e ele, lá à frente, naquela música de palavras sorridentes", acrescentou Bento Rodrigues.
O jornalista fez, ainda, questão de sublinhar o carisma do colega e amigo: "O Faria conseguia falar com uma pedra, e que ela lhe respondesse, tal era a capacidade de conquistar os outros. À chegada, percorremos o acampamento das Falintil em busca do comandante Falur, figura mítica da resistência timorense, o homem que liderava as operações. O acampamento era um autêntico estaleiro. Dezenas de homens a preparar a festa para receber Xanana, a erguerem palhotas para receber os que haviam de vir de outras paragens, porque, depois da libertação, a guerrilha estava a concentrar-se num único acampamento, mais perto de Díli."
"A caminhada foi uma epopeia, o Faria parecia em casa. A cada meia dúzia de passos, estacava para mais um cigarro e mais uma conversa que fazia parar os trabalhos. Chegámos, por fim. O comandante Falur recebeu-nos e, percebendo que éramos da televisão, pediu um favor: se podíamos ver o que se passava com a velha e gigante antena parabólica instalada ali no meio do terreiro e que, há meses, deixara de receber o mundo.
Ora, isto era música para a veia generosa do Faria, já as mãos grandes a puxar do canivete que se multiplicava num nunca mais acabar de ferramentas. Inspeciona aqui, desaperta acolá, tira fio, mete fio, mas o prato de chapa e rede da largura de dois homens de braços abertos continuava sem sinal.
Continuou. Pôs-se a remendar uma parte da rede da antena como um pescador remenda as malhas da pesca. Já a acender o cigarro e depois de afastar a franja que cobria os olhos, sentenciou, no sorriso habitual: – Pá, acho que está! Mas não havia maneira de fazer a prova, porque a televisão estava guardada e, por uma razão que não recordo, não podia ser trazida naquele momento.
Em breve anoiteceu, o comandante Falur meteu-nos numa palhota onde esperava por nós um colchão feito de capas de espigas, nenúfares para dois corpos esgotados e habituados ao chão cru. Fomos arrancados do sono pelo alarido que vinha do terreiro, uma mistura de vozes e gritos que o espanto, talvez o medo, não me permitiu logo decifrar. – Vou ver, disse ele! E foi. Mal inclinou a cabeça para fora da palhota, o sorriso quase instantâneo e um gesto com a mão para que me aproximasse.
Numa meia lua gigante, o acampamento em peso vibrava com o que se passava no centro do terreiro: uma caixa de luz trazia o mundo em português àquele lugar perdido nos confins do planeta e onde a liberdade acabara de chegar. Mas só naquele instante se fez plena. – A antena funciona, Faria! Fernando Faria 1972 - 2020", rematou.
Veja, agora, o vídeo dessa reportagem de Bento Rodrigues com Fernando Faria.