O Amor É Uma Invenção dos Pobres – Pensamentos e Emoções Sobre o Amor e os Filhos é o nome do segundo volume da trilogia autobiográfica de Luísa Castel-Branco. Disponível a partir desta quinta-feira, dia 17, a obra traz depoimentos corajosos, mas também aterradores, sobre aquilo pelo qual passou a autora.
Um exemplo disso mesmo são os abusos sexuais de que Luísa Castel-Branco foi vítima na infância. Em entrevista à SELFIE, cuja primeira parte publicamos agora, a escritora faz um relato cru e impressionante do que viveu quando tinha apenas sete e 11 anos, às mãos de "um amigo da família" e de "um primo afastado". "Qualquer criança que é molestada perdeu a vida", define.
Segundo a sinopse, este livro fala de "maus-tratos psicológicos na infância, traição e mentira e abusos sexuais sobre menores". Passou por tudo isto?
Sim... [Pausa] Quase todo o livro são coisas de que ninguém sabia, nem mesmo os meus filhos ou o meu marido [Francisco Colaço].
Portanto, a sua família vai descobrir uma nova Luísa?
Sim. Ao mesmo tempo do que o leitor. E foi essa noção que foi tão difícil eu aceitar. Se eu não tivesse escrito aquilo que estava entalado na minha garganta, na minha alma, no meu coração, não faria sentido eu falar sobre nada. Porque tudo começa ali e se prolonga para o resto da vida. Mas, ao mesmo tempo, saber que iria abrir uma porta que nunca tive coragem de abrir... Quando o livro passou para a última fase da impressão, pedi à minha filha, Inês [Castel-Branco], que o lesse, em nome de todos os meus filhos. Eles eram as pessoas que, para mim, realmente contavam, além, obviamente, do Francisco, que também leu. Agora, os dados estão lançados e tenho de ter coragem para aquilo que vai haver. Não é fácil...
O que disse Inês?
Disse que eu escrevia muito bem e que estava tudo bem... Aquilo envolve o pai dela, a minha vida o mais pessoal possível... Envolve coisas de que nenhum deles sabia. Queria que ela soubesse antes. Ela fez-me um telefonema e disse: "A mãe escreve muito bem." E eu disse: "Está bem, filha, mas...". "Não há 'mas' nenhum", disse-me ela. Pronto. A partir do momento em que não há "mas" nenhum... Tive o único aval que, para mim, era importante.
Tenho de fazer-lhe esta pergunta: foi abusada sexualmente em criança?
Sim [longa pausa].
Como se supera isto?
Não se supera... Tem-se uma vergonha para o resto da vida, como se aos sete e aos 11 anos pudesse fazer-se mais alguma coisa.
Foi vítima de abusos sexuais duas vezes?
Sim. Quando, naquela altura, nem sabia o que aquilo era. Daí que não fosse passível de falar.
E eram outros tempos...
Sim, foi há 50 e não sei quantos anos.
Foi abusada por pessoas que conhecia?
Sim. Um amigo da família, de toda a vida, e um primo afastado.
E nunca contou a quem quer que fosse?
Não. Até este momento.
Como se vivem tantos anos em silêncio?
Com vergonha. É tão estúpido... Uma pessoa está a ver qualquer uma das milhentas notícias que aparecem e olha aqueles milhentos casos que vão a tribunal e saem de lá com penas suspensas. Tenho sempre vontade que alguém ensine o juiz ou a juíza o que isto realmente significa. É óbvio que nenhuma daquelas crianças merece ter vergonha. Deve ser, exatamente, o contrário.
Naquela altura, teve noção daquilo por que estava a passar? Ou só mais tarde?
Tive a noção de que aquilo não era normal e que não queria aquilo. Mais do que isto, é muito difícil para perceber.
E isso não causou traumas na relação com outros homens?
Tocou num ponto importantíssimo, que é abordado no livro. Sem isto que acabo de explicar, que nunca tinha dito, não faz sentido o resto da minha vida. Por mais que eu quisesse não falar disto. Preferia não ter falado e não passar por esta dor enorme, com uma sensação de conspurcação, de que ninguém me defendeu. E a verdade é que ninguém me pôde defender, porque ninguém sabia. Eram conceitos que nem sequer havia. Não me lembro sequer de alguma vez ter ouvido falar sobre isso. Até muito tarde. Até mesmo muito tarde. Já era casada e mãe de filhos.
Sente que resolveu esta questão dentro de si?
Não. Acho que qualquer criança que é molestada é uma criança que perdeu a vida, a inocência, os sonhos, uma data de coisas... Só mais tarde, quando fiz psicanálise, percebi que aqueles pesadelos que tinha recorrentemente eram verdade.
Era isso que ia perguntar-lhe: procurou ajuda?
Achava que tinha pesadelos, como todos têm pesadelos de muita coisa... Uma vez destapado... A partir daí, vêm os sons, a textura da roupa... Vem tudo em catadupa. E isso é que deu origem a que eu, a seguir, tivesse ataques de epilepsia e tivesse ido para uma clínica fazer uma cura de sono.
Isso já com que idade?
A Inês tinha nove anos. Portanto, foi há 31 anos.