Crónicas

Luís Mateus: "O futebol nasce bom, o homem é que o corrompe"

Jean-Jacques Rousseau não o teria dito certamente melhor se tivesse dado pontapés no couro, ou se acabasse reencarnado no antigo avançado do Nantes, seu homónimo. O bom do Jean-Jacques não teria dúvidas, acreditem. É o homem, e não a mulher, que tem culpa. E, na verdade, vocês já o sabem, apenas precisam que alguém o diga. É por isso que assino esta crónica.

Jornalista | Analista de Futebol | Comentador
  • 22 nov 2022, 10:29
Luís Mateus
Luís Mateus

Ora, vejam: o fora de jogo sempre foi algo difícil de explicar. Às mulheres, dizem as más-línguas, porém diria que a todos. A certa altura, alguém quis fazer do mesmo uma armadilha. Aproveitar o vazio da lei, invertê-la a seu favor. Não em nome das mulheres, mas para todo o planeta. Para os que então eram nascidos ou não demorariam muito a nascer.

Sim, o futebol ainda foi mais complexo do que é hoje, antes de sequer haver Campeonatos do Mundo. O jogo dava primeiros passos, nem por isso hesitantes, tal a convicção com que eram dados, assentes na ideia de ficarem gravados para que outros os pisassem, mas experimentais para quem olha agora, à nossa distância. 

Alguém pensou, porque o fora de jogo era determinado por três jogadores do adversário, ao contrário dos dois de hoje, que, ao se adiantar um deles, se afastaria definitivamente a ameaça da própria baliza. Ou seja, era o estratagema perfeito, os primeiros sinais do anti-futebol. Imaginam o quão difícil seria para os avançados não caírem na cilada? Quanto mais explicá-lo a quem dele mais fugia. Como fugiriam as mulheres.

A beleza da história - e de um género que tantas vezes estupidamente maltratámos, e não só no mundo árabe que pagou a peso de ouro, por debaixo da mesa, para ter um Mundial sem grande alegria, tamanhas as restrições impostas a adeptos, jogadores, treinadores e jornalistas - é que elas perceberam, rapidamente, que não precisavam de entender o jogo para apreciá-lo, para vibrar com os seus golos, dançar com os dribles ou desesperar com os falhanços. Sorrir com as vitórias, chorar com as derrotas. Elas perceberam, tal como antes muitos se recusaram a seguir o caminho contranatura que negava a festa e mudaram a regra para apenas dois defesas (guarda-redes incluído) a delimitar o fora de jogo, que podiam arrematar a conversa à sua maneira, sem contas de multiplicar ou lá o que eram esses 4x4x2 ou 4x3x3 de que tanto se fala. Ou sem o offside, só porque foram capazes de inventar que era possível um jogador ser colocado fora de jogo estando dentro dos limites do campo.

As mulheres também inventaram o adepto multitasking. Vibram a espaços entre considerações sobre política, família, as novidades no ginásio e o vizinho que não as deixa dormir ao fim de semana, porque quer ir ao "The Voice". Gritam golo e rematam com um "já viste o raio do miúdo?"; de certeza nenhum dos que está em campo. Criticam o Marcelo ou o Costa antes de questionarem "por que razão o raio do número 9 não chuta?". Pedem para não gastarmos tanto gás e água a tomar banho e, antes de nos explicarmos desde o banco dos réus, já sublinham: "Este guarda-redes é bom!". Acreditem, agora já não tenho dúvidas de que é mesmo!

As mulheres, porque, para elas, o futebol talvez seja a coisa menos importante entre as menos importantes, mantiveram a pureza no que nós, homens, complicámos. Com as táticas, as estatísticas, a dialética entre o ataque posicional e a transição ofensiva vertical, tudo o que nos faz perder a simplicidade das coisas. Não é que não faça sentido - faz e temos de ser eternamente contra a pobreza na argumentação com a atitude e o querer -, apenas não podemos deixar escapar o cerne da questão: o prazer de ver um jogo. Há uma bola, são 11 contra 11 e é esperar que não ganhe sempre a Alemanha.

A minha mulher já ocupou o seu lugar no sofá à espera do Mundial, desempoeirou a bandeira e o cachecol, e eu não vou tardar, porque quero ver se aprendo alguma coisa. Será um curso intensivo de um mês, a minha prenda de Natal para mim mesmo. Deixem-me só avisar os miúdos para não levarem muito tempo no banho.

Luís Mateus
Jornalista | Analista de Futebol | Comentador

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