Internacional

Aos 64 anos, Christiane Torloni garante: "Sou uma mulher mais livre. Soltei amarras que não são minhas"

A propósito de uma visita recente a Portugal, a atriz Christiane Torloni concedeu uma entrevista exclusiva à SELFIE, na qual falou sobre a relação próxima que mantém com o país, refletiu sobre o papel do ator e enumerou as conquistas que chegam com a idade.

Regressou ao nosso país, para apresentar, no festival Acqua Content, em Cascais, o documentário que co-realizou, "Amazónia - O Despertar da Florestania". A sua ligação ao nosso país é muito próxima: a Christiane já morou em Portugal, nos anos 90. Que memórias guarda dessa estadia?
São memórias profundamente emocionais. Nós estamos, agora, a viver um momento, no Brasil, em que há muitos brasileiros a saírem do país, devido à crise atual. As pessoas estão a exilar-se em vários países, inclusive em Portugal. Mas quando saí do Brasil, eu não saí por motivos políticos ou económicos. Saí por questões pessoais, da minha vida familiar. Fui recolher-me, em Portugal. E tenho ótimas memórias. Estava em Portugal, numa altura em que estava a ser emitida uma novela muito linda, "Kananga do Japão", e as pessoas tratavam-me amorosamente, nas ruas, e chamavam-me pelo nome da personagem. Além disso, morei em Cascais, um lugar que amo. Daí ter feito questão de marcar presença no festival, que acontece nesse concelho. De resto, foi em Portugal que fiz a minha primeira produção de teatro, que se estreou no Porto, no Teatro Nacional São João. Portugal é um lugar que foi um chamado do meu coração, já há 30 anos. E, ainda, tive a oportunidade de fazer amizades profundas. Recordo, com saudade, o querido Roberto Leal, que era um homem generoso, consciente e muito espiritualizado.

Em que aspetos é que se identifica mais com os portugueses?
Há aspetos culturais em comum que são profundos. Brasil e Portugal são países irmãos. Temos uma marca indelével, nós entrelaçamo-nos como raízes de árvores, há 530 anos. O que pode ser mais forte do que um laço afetivo ou cultural? Por vezes, nós até nos podemos alinhar com outros países, nos quais gostamos de passear, de fazer turismo... Mas nós não somos alinhados, afetivamente, por esses países. Não dizemos que moraríamos nesses países. E, na primeira vez que fui a Portugal, em 1991, para apresentar um espetáculo, conheci Cascais e afirmei, imediatamente: "Eu moraria aqui!"

Aceitaria internacionalizar ainda mais a sua carreira, participando numa novela ou numa série portuguesa?
De facto, tenho um imenso prazer que o meu trabalho tenha cruzado o Atlântico. Aliás, graças às novelas, o meu trabalho já chegou a países para os quais ainda nem sequer viajei! [risos] Fico muito feliz por o meu trabalho ter chegado, antes de mim, a Portugal. E admiro muito a ficção portuguesa. Há uns anos, tive o prazer de conhecer o Manoel de Oliveira, num festival, o Fantasporto, no qual recebi um prémio. Que homem inacreditável! Com uma energia, uma juventude... Era muito mais jovem do que todos nós. Então, teria um imenso prazer em participar numa série ou numa novela portuguesa. Acho que o audiovisual foi ficando cada vez mais sofisticado, em Portugal. Há toda uma cultura do teatro e da música que, tal como no Brasil, foi chegando ao cinema e à televisão. Seria um gosto enorme! Por que não?

A Christiane faz-nos companhia nas inúmeras novelas que são transmitidas, por cá. Atualmente, está a ser repetida a novela "A Viagem" - e com sucesso. O que explica o grande êxito desta trama, após 27 anos?
"A Viagem" é um presente para os corações dos espetadores! Sabe que, durante essa novela, tive uma epifania: percebi que o trabalho de um ator não é só entretenimento, o que já é, por si só, uma grande qualidade. Nós também podemos confortar as pessoas. Acalentar o coração de quem nos vê. "A Viagem" fala sobre isso, sobre a transformação de uma mulher, Diná, interpretada por mim, que, no começo da novela, é uma mulher irritantemente ciumenta e cética, mas tem um profundo amor pelo irmão e, depois, vive um grande romance. E é através desses dois amores que a Diná se transforma. Além disso, a novela tenta responder a uma pergunta universal: existe vida, para além da morte? E, agora, regresso ao Roberto Leal: por incrível que pareça, o primeiro livro que li do Allan Kardec [autor especializado em espiritismo e cuja doutrina foi a base da novela "A Viagem"] foi-me oferecido pelo Roberto. Mal sabia que, anos depois, iria trabalhar sobre esse tema, numa novela tão especial. Tudo tem uma missão, nessa vida.

Há outras novelas, que foram um sucesso em Portugal, e que mostram, também que o papel de um ator vai muito para além do entretenimento. Por exemplo, em "Caminho das Índias", a sua personagem era mãe de um jovem esquizofrénico, enquanto, em "América", deu vida a uma cleptomaníaca. Ser ator é, também, alertar para importantes temas sociais, como a saúde mental?
Com certeza! As pessoas continuam com muita vergonha da doença mental. Elas escondem os filhos que sofrem desses problemas, escondem de si próprias, o que é um grande impedimento para a cura. Nesse sentido, a arte tem uma função muito importante, porque, de uma forma subliminar, existe uma identificação misteriosa entre o artista e o espetador, que começa a perceber que há uma "luz no fundo do túnel". Ele percebe, no caso da saúde mental, que aquilo não é um pecado, que não tem de se sentir culpado. E que há soluções. E, a partir daí, começa o processo de cura, porque os espetadores sentem-se aliviados. É interessante, porque, nesses dois trabalhos que foram citados, as pessoas vinham ter comigo, na rua, começando por falar que tinham uma pessoa na família que, infelizmente, sofria de um desses problemas. E elas iam falando e falando e, depois, iam se soltando e eu percebia que eram elas quem tinham esse problema. São temas sociais fraturantes e é por isso que fazemos um grande trabalho de pesquisa, ao preparar essas personagens.

E ainda estamos a rever "Um Anjo Caiu do Céu", uma novela com um humor bastante acentuado. A comédia é um género desafiante?
Acho que é mais difícil do que o drama. Temos de ter um timing muito bom.

Quando é que teremos a Christiane de volta a uma obra inédita seja na televisão, no cinema ou no teatro?
Estamos dependentes da pandemia, porque o nosso trabalho é muito coletivo, estamos em contacto com muitas pessoas. O Brasil está a voltar muito devagarzinho para essas produções. Houve várias que ficaram interrompidas, por conta da pandemia, e os atores da minha faixa etária ficaram em casa. Só há cerca de dois meses é que fiz a minha segunda dose da vacina. Estou num compasso de espera. Só abri uma exceção, para participar numa competição de dança, entre famosos, num programa de televisão. Tirando isso, fiquei um ano e meio fechada em casa. Literalmente.

Vê com preocupação a atual crise que a cultura atravessa, no Brasil?
Profundamente. Sou uma produtora de conteúdos e tive dois projetos - em teatro e em cinema - que ficaram parados, porque as regras estão de cabeça para baixo. Estou à espera que a casa volte ao lugar. Este governo tem agravado bastante a crise cultural. Antes, tínhamos um Ministério da Cultura. Hoje, somos uma Secretaria do Ministério do Turismo. O que acha disso? Parece uma piada! E já foi pior! A cultura já foi uma Secretaria do Ministério da Pesca! Pode rir, à-vontade. Parece uma piada de péssimo gosto! A cultura é a cara de um país. Nós somos os embaixadores de um país. E, neste momento, temos a indústria audiovisual totalmente parada. É uma loucura. Só nos resta ter esperança. Isto vai passar. Isto vai ter de passar, porque este é o pior momento da nossa história, sem dúvida. Vamos ver quanto tempo vamos demorar para nos recuperar.

Aos 64 anos, qual é o segredo da beleza de Christiane Torloni?
Ah, muito obrigada! [risos] Acho que, com a minha idade, o importante é ter saúde. Sou muito disciplinada, no que diz respeito à saúde. Pratico ioga, há mais de 20 anos, faço meditação, gosto de praticar desporto, principalmente vela, stand up paddle, andar de bicicleta, caminhar... E também é importante ter a cabeça no lugar: saborear um bom vinho, provar uma boa comida... Além disso, tenho a felicidade de ter os meus pais, com saúde, já na casa dos 90 anos. É uma herança, também.

Numa entrevista recente, afirmou que "a vantagem do jubileu é que nós vamos ficando um pouco mais sábios na vida". Isso também se aplica na vida amorosa? E de que forma?
Sim, é verdade. O [William] Shakespeare escreveu uma frase de que gosto muito, no "Rei Lear", no qual uma personagem afirma que o pai ficou velho, antes de ficar sábio. Então, eu tento ficar sábia, antes de ficar velha. E isso aplica-se, mesmo, a todas as áreas da nossa vida.

Nessa entrevista afirmou, ainda, que dispensa rótulos, na vida amorosa. Essa liberdade também é algo que chega com a idade?
Há uma outra frase de que gosto muito que afirma que quanto mais livre uma mulher é, mais sensual ela fica. Essa frase foi-me dedicada há muito anos, mas só agora é que a entendi, nos últimos dez anos. Agora, sou uma mulher mais livre, soltei amarras que não são minhas.

É por esse motivo que há já alguns anos que não assume uma relação publicamente?
Não sei se isso tem a ver com os rótulos... Simplesmente, não sei se isso é mais interessante para as pessoas. Não sei se isso ajuda... Acho que estou tão ocupada com a questão da Amazónia, que acho que isso é que é importante. É aí que quero colocar o holofote, neste momento. Como se diz no Brasil, prefiro destacar a minha pessoa jurídica e não a minha pessoa física.

Como é a Christiane enquanto avó?
Olhe, ser avó foi um grande presente da vida. É bonito ver um filho se tornar pai. Sinto que os filhos tendem a valorizar mais os pais, depois de eles próprios serem pais. Então, o Leonardo valoriza-me mais, neste momento. E sinto que sou mais colaborativa. Ser avó é uma delícia... Ainda há uns tempos, o meu neto disse-me uma frase muito bonita. Eu costumo brincar muito com ele, mas, houve um dia, em que fiz algo funcional: sequei-o, depois do banho. E ele olhou para mim e disse-me: "Não, avó! Você é boa é para brincar!" E ser atriz é isso mesmo. Como é que dizemos representar, em inglês? To play! Então, eu brinco há já muitos anos, o meu neto está certíssimo!

E com tantos anos de carreira, o que sente que ainda lhe falta fazer?
Há grandes papéis que precisam de muita maturidade para serem vividos. Não sei se você viu um filme, o "Nomadland". Que lindo filme! E é aí que percebemos a importância da passagem do tempo, porque os conflitos vividos, no filme, só fazem sentido com personagens - e, por isso, com atores -, na terceira idade. Só na terceira idade é que uma atriz pode fazer de Rainha Isabel II! Até eu própria interpretei, recentemente a Maria Callas, um papel que não podia ter feito há 30 anos.

Relacionados

Patrocinados