Crónicas

Adolescentes pensam em matar familiares? Um olhar clínico sobre o que o medo nos impede de ver

É uma pergunta que fere o instinto parental, que choca e causa rejeição imediata: "Será possível um adolescente matar um familiar?".

Psicóloga Clínica
  • 31 out, 13:31
Vera de Melo
Vera de Melo

A maioria dos pais responderia com horror, "o meu filho nunca pensaria nisso" e, na verdade, é o que todos desejamos acreditar. Mas a Psicologia ensina-nos que o pensamento humano é mais complexo, mais simbólico e, muitas vezes, mais desesperado do que gostaríamos de admitir.

Na adolescência, a mente é um território em ebulição. O cérebro está ainda em desenvolvimento, sobretudo nas áreas que regulam a impulsividade, o controlo emocional e a empatia. As hormonas, a busca por identidade e a necessidade de pertença criam uma tempestade interna que nem sempre encontra canais saudáveis de expressão.

"É essencial distinguir entre pensar e agir. "

Quando a dor psicológica, a raiva ou a frustração se acumulam num ambiente onde o adolescente não sente segurança emocional, é possível que surjam pensamentos violentos. Não necessariamente porque queira fazer mal, mas porque sente que não tem outra forma de libertar o que o sufoca.

É essencial distinguir entre pensar e agir. O pensamento agressivo, por mais perturbador que seja, pode ser uma metáfora de poder, de controlo, ou até de vingança simbólica sobre algo que o adolescente vive como injusto. Muitos desses jovens não desejam realmente matar ninguém, querem apenas matar o sentimento de impotência. A violência, neste sentido, é uma linguagem: uma forma distorcida de dizer "estou ferido", "não aguento mais", "preciso que me oiçam".

"A raiva adolescente é muitas vezes mal interpretada."

A experiência clínica mostra que estes pensamentos raramente aparecem no vazio. Há sempre uma história emocional por trás, uma família marcada por silêncios, por críticas constantes, por ausência de validação. Às vezes há negligência subtil, um amor condicionado, ou pais tão sobrecarregados pelas próprias dores que se tornam
emocionalmente inacessíveis. Noutras vezes, há violência explícita: humilhações, insultos, controlo, abuso físico ou psicológico. Em qualquer um desses cenários, o adolescente sente-se invisível. E a invisibilidade, quando se mistura com a dor, torna-se terreno fértil para a raiva.

A raiva adolescente é muitas vezes mal interpretada. É vista como desobediência, arrogância, ingratidão. Poucos adultos percebem que por detrás da fúria existe quase sempre tristeza, frustração e um sentimento profundo de abandono. Quando a raiva não encontra espaço para ser nomeada, ela transforma-se em fantasia destrutiva. E é
nessa fantasia que o adolescente tenta, simbolicamente, recuperar o controlo da própria vida. Não é o desejo de matar o outro, é o desejo de matar a dor.

"É importante distinguir o surto emocional do surto psicótico."

Mas há momentos em que o sofrimento deixa de ser apenas simbólico e se manifesta no corpo, através dos surtos emocionais. Esses episódios de raiva intensa, de perda momentânea de controlo, em que o adolescente grita, chora, ameaça ou destrói objetos, são muitas vezes o ponto mais visível de uma dor antiga. Para os pais, parecem ataques de agressividade gratuita; para a psicologia, são descargas de um sistema emocional desregulado.
Durante um surto emocional, o cérebro entra em modo de sobrevivência.

A amígdala, o centro do medo e da reação, assume o controlo, enquanto o córtex pré-frontal, responsável pela ponderação e reflexão, "desliga". O adolescente deixa de pensar e passa apenas a reagir. O que vemos é fúria; o que está por baixo é pânico, medo e impotência. Muitos adolescentes relatam, após o surto, uma sensação de vazio e vergonha "não sei o que me deu", "não era eu". De facto, num sentido neurobiológico, não era exatamente ele: estava num estado de desorganização emocional tão intensa que perdeu temporariamente o acesso à sua parte racional.

Contudo, é importante distinguir o surto emocional do surto psicótico. O primeiro é reativo, transitório e emocionalmente compreensível dentro do contexto da vida do jovem. Está associado à impulsividade, à raiva ou à frustração, e apesar da intensidade, o adolescente mantém algum contacto com a realidade. Já o surto psicótico tem uma natureza completamente distinta: implica uma rutura com a realidade, podendo incluir delírios, alucinações ou perceções distorcidas do ambiente e das intenções alheias. Nestes casos, o pensamento violento pode surgir não como expressão de raiva, mas como resposta a vozes ou ideias persecutórias que o adolescente acredita serem reais.

"Ignorar sinais de desconexão com a realidade é perigoso."

Os surtos psicóticos são menos frequentes, mas requerem intervenção psiquiátrica imediata. Ignorar sinais de desconexão com a realidade, como ouvir vozes, falar sozinho, desorganização grave do pensamento ou crenças delirantes, é perigoso, porque o jovem já não tem capacidade de avaliar as suas ações.
Outro fator que aumenta exponencialmente o risco de descontrolo é o consumo de substâncias. O álcool, a canábis, as anfetaminas e outros estimulantes têm impacto direto nas zonas do cérebro responsáveis pela regulação emocional e inibição de impulsos. Um adolescente emocionalmente instável, ao consumir drogas, torna-se vulnerável a estados de desinibição, agressividade e impulsividade extrema.

A canábis, frequentemente banalizada, é especialmente relevante: o seu consumo regular, sobretudo em cérebros ainda em desenvolvimento, está associado a alterações cognitivas, maior irritabilidade e risco acrescido de episódios psicóticos transitórios. Em adolescentes com predisposição genética ou vulnerabilidade psicológica, pode mesmo precipitar surtos psicóticos. Assim, o que poderia ser "apenas" um surto emocional pode transformar-se num colapso psicótico sob o efeito de substâncias.

Os consumos, ao mesmo tempo que reduzem temporariamente o sofrimento, enfraquecem a capacidade do adolescente para processar emoções e pensar com clareza. É um falso alívio: anestesiam a dor, mas agravam a impulsividade. Quando o efeito passa, a culpa e o vazio intensificam-se, e é nesse ciclo de alívio e desespero que os pensamentos destrutivos tendem a surgir com mais força.

"O perigo está no isolamento, na vergonha, na falta de contenção e na ausência de escuta."

Por isso, o trabalho clínico não pode isolar os sintomas do contexto. É preciso compreender a globalidade do sofrimento: a estrutura emocional, o vínculo familiar, a história de vida, e os comportamentos de fuga, incluindo os consumos. Um adolescente que chega ao limite não precisa de ser rotulado, precisa de ser compreendido dentro da sua dor, do seu corpo e da sua história.

A pergunta "os adolescentes pensam em matar familiares?" deve ser encarada com coragem e humanidade. Sim, alguns pensam, sobretudo quando a dor é maior do que a capacidade de a suportar. Mas o pensamento, por si, não é o perigo: o perigo está no isolamento, na vergonha, na falta de contenção e na ausência de escuta.

O papel dos pais e dos profissionais não é vigiar é interpretar e conter. É perceber que, muitas vezes, o adolescente não quer destruir o outro, mas apenas interromper o sofrimento que sente dentro de si. Falar sobre raiva, surtos, consumos e dor psíquica não é alimentar a violência; é criar espaço para que ela deixe de ser necessária.

No fim, o adolescente que um dia imagina fazer mal à família não é um agressor em potência é um jovem em colapso, muitas vezes sozinho dentro da própria cabeça, a tentar sobreviver à confusão de crescer num mundo que não o ensina a sentir.

Vera de Melo
Psicóloga Clínica

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