Pode-se dizer que este foi o maior desafio da sua carreira?
Sem dúvida! Já tive muitos desafios grandes, mas este é, sem dúvida, um divisor de águas na minha vida.
Porquê?
Primeiro, porque Gal Costa é um grande ídolo no meu imaginário musical e artístico. Ela é a voz que sempre ouvi, então, este foi um convite irrecusável e, ao mesmo tempo, ímpar. O filme teve a beleza de ter tempo para ser trabalhado. Conheci, aos poucos, a própria Gal e a obra dela. Foi muito emocionante e um grande desafio, mas também a aventura mais bonita que já recebi deste ofício que eu escolhi e que me escolheu. Estou emocionada por saber que chegará, agora, aos cinemas de Portugal. Gal sempre teve uma ligação muito forte com Portugal.
Como foi, na prática, o processo de preparação?
Tive a oportunidade de estar perto dela e de conhecê-la. Foi um processo de aproximação à cidade de Salvador, de mergulhar no fonograma de uma forma muito diferente... Não era só ouvir. Eu escutava quase compulsivamente. Tornou-se numa boa obsessão. De cada vez que a escutava, entendia um pouco mais a respiração e a história que ela conta em cada fonograma. A partir dessa escuta, vieram os questionamentos, que me impulsionavam para um entendimento do que eu acreditava que seria interessante para este filme. Eu não queria que Gal fosse assistir a uma imitação dela. Então, em alguns momentos, procurámos uma mimese. Noutros, é mais sobre o questionamento artístico de uma jovem que está a chegar ao Rio de Janeiro e que, embora nós saibamos que iria dar certo, tinha mil questões.
Já a conhecia pessoalmente antes?
Tinha visto um espetáculo dela e tinha tido a oportunidade de encontrá-la nos estúdios da Globo, onde estava a gravar uma novela. Fiz-lhe uma reverência, ainda sem sonhar com o filme. Mas, graças ao filme, pude aproximar-me dela e dizer-lhe o quanto a amo. Todos nós, da equipa do filme, fizemo-lo como um presente para Gal Costa. Infelizmente, ela não conseguiu ver o filme pronto [N.R.: Gal Costa morreu a 9 de novembro de 2022], mas sabia da nossa intenção e do nosso respeito.
Quando esteve com ela, pediu-lhe algum conselho?
Sim! Deu-me alguns...
Quais?
Uns foram muito pessoas, que guardo em segredo, com muito afeto. Até o jeito dela... Gal era uma mulher muito simples no trato, muito normal, muito doce, muito mega... A imagem de uma diva muito distante não aconteceu.
Como atriz, interpretar alguém que existe ou existiu aumenta a responsabilidade ou não? Ainda para mais, falamos de alguém que o Brasil ama...
Sim, com certeza! A responsabilidade era muito grande, portanto, a mimese só cabia num lugar muito específico. Fizemos este filme para ela, para ela assistir ao filme. Eu não queria que ela assistisse a uma imitação dela mesma, mas que pudesse voltar um pouco atrás na própria história. O público também sabe que, ali, são atores a contar uma história, a recontar uma história, a partir de uma lente específica, que queria também falar muito do momento político que o Brasil estava a viver na juventude de Gal e refletir sobre o que estamos a viver hoje. Acho que vivemos um momento mundial complexo, onde a arte e a liberdade precisam de ser reafirmadas, onde a democracia precisa de ser reafirmada em cada gesto artístico nosso.
Hoje mais do que naquela altura?
Mais, não. Vejo o que acontece hoje com muita seriedade, mas acho importante ressaltar que o que aconteceu na ditadura não pode voltar a acontecer. E, para isso, precisamos de falar e de contar histórias. Precisamos também de entender o medo que atravessou os artistas e a resistência que eles tiveram. É também uma forma de enaltecer e agradecer a toda a classe artística.
Agora, é a vez de os portugueses assistirem ao filme...
... Fico muito feliz que isso aconteça. Desde a nossa estreia que sonhava com este momento. Por conta das gravações da novela "Renascer", não posso estar aí. Caso contrário, estaria. Interessa-me muito entender como Portugal vai receber o nosso filme.
Como já disse, Gal Costa não viu o filme. O que sente que ela diria do resultado final?
É muito difícil poder afirmar qualquer coisa nesse sentido, porque ela não viu. Esse vazio, nem a minha imaginação consegue ocupar ou preencher. Mas as nossas estreias em Salvador, no Rio e em São Paulo foram luminosas e tiveram a presença de muitos amigos e familiares de Gal. Todos foram muito carinhosos. Como o nosso objetivo era fazer uma homenagem respeitosa, ver como o filme chegou às pessoas próximas dela e a amavam aquece o meu coração. Estavam todos muito emocionados e felizes. Não sou Gal, nem tenho essa pretensão, mas acho que o filme ocupa um lugar de homenagem e saudade importante.
Ao fim de 20 anos de carreira, esta foi uma redescoberta como atriz?
Sim, absolutamente! E também o começo de um namoro, uma paixão com a música, que espero que tenha desdobramentos. Ainda quero gravar um disco, poder expressar-me desse jeito... Porque eu fui muito feliz a fazer este filme! Acho que Gal me deu de presente a minha própria voz.