Crónicas

Magda Burity sobre o "Big Brother": "Michel e o seu Lugar de Fala"

Chamaram-no a planta da casa e eu também. Senti, nas primeiras semanas, que o Michel não estava ali a jogar, mas a perder a sua oportunidade, e, até, a nossa. Não escondo que sempre que vejo uma pessoa negra na televisão a representar seja o que for fico orgulhosa. Não escondo. Claro que os meus critérios são exigentes e, por isso, não defendi o rapper sempre, nem tomei partidos, mas, ao longo do tempo, fui entendendo a sua missão.

  • 12 nov 2020, 08:43

Sempre que manifesto esse meu orgulho, nas redes sociais sociais, recebo os comentários dos confortáveis e das confortáveis de serviço, com a ladainha da "meritocracia". Adoro a palavra "ladainha", por isso, repito-a, muitas vezes. É que só quem está confortável com a sua situação na sociedade, e olha para o próximo como inferior, é que se coloca no papel de ditar leis, de não pensar numa sociedade patchwork que somos e de achar que este ativismo é mania, porque até temos uma ministra negra.

Mas o Michel não entrou na casa por mérito. Foi sujeito a um casting, como todos os outros, e, como se queria uma "revolução", talvez se esperasse que ele fosse defender uma causa sem causa.

Demorei algumas semanas a entender o Michel, mas, depois, entendi. Falei sobre isso num "Big Live", há umas semanas, e encontrei a nossa causa no Michel. Recordam-se de quando ele, numa das galas, visivelmente zangado, pediu para falar, quando foi acusado de ser planta e reiterou que não estava na casa para "arrumar confusão com ninguém"? E acrescentou, ainda, que "pessoas como ele não precisam de estar, sempre, a discutir ou a arranjar problemas" para se afirmarem?

Foi mais ou menos isto que o Michel fez questão de frisar e que, confortavelmente, passou pelos pingos da chuva, porque não dá canal. 

Basicamente, mesmo sem saber, e, por isso, o Michel é tão acarinhado cá fora, o futuro modelo da LV, brincadeira que queria que se tornasse verdade, veio trazer para cima da mesa a questão da afrodescendência.

Dos putos filhos de africanos que se mudaram para Portugal a partir de 1975 - ano em que nasci, por isso, vejam como as mentalidades demoram a mudar - e foram atirados para as periferias de Lisboa e que são, maioritariamente, caboverdianos, mas também os há angolanos, moçambicanos, santomenses e guineenses. Mas são invisíveis. Sabem porquê? Porque as mães e os pais de rapazes e raparigas como o Michell são os primeiros a chegar para limpar os locais onde trabalhamos. E os últimos a sair.

Foram e continuam a ser as pessoas que constroem os edifícios pós Estado Novo e toda a gente adora dizer que gosta muito de nós - os negros. Porque teve ou já se cruzou com uma empregada cabo-verdiana e acha que África é um país e não um Continente. Chegam a achar, ainda, que todos os negros falam crioulo e não entendem que, por exemplo, na região do meu pai, em Moçambique, se fala Changana, e que no local onde a minha mãe nasceu, em Angola, no Huambo, se fala Umbundu.

Já viram que mundo melhor e mais culto teríamos se parássemos para escutar, olhar e dar oportunidades à representatividade? É que, por muito que se quisesse espremer o Michel, não ia ser possível, devido ao seu enquadramento. Ao que prometeu, e não se deve ao facto de ter duas caras, mas ao facto de ter de provar, duas vezes, que é igual aos outros, aliás, o mais educado da casa.

Mas ele tem sonhos. Tem amor e tem a sua visão. Acima de tudo, quando desceu aquelas escadas e abraçou a mãe e a irmã, deu para perceber por que prometeu que não ia entrar em conflitos dentro do "Big Brother". Só o Pedro o conseguiu tirar do sério, mas a família e os amigos ficaram orgulhosos. Só quem conhece realidades como a do músico entende, por isso, demorei a soltar estas letras e espero que possam contribuir para todos nós.

Aquela energia só sente quem sente na pele. Só se sente aquele amor, quando uma família inteira se une para sobreviver a uma sociedade que, por vezes, segrega pelo tom de pele. Mas, se fizermos um paralelismo com o Rui da anterior edição, o seu regionalismo e a comunicação com as ovelhas não causaram estranheza aos demais. Pouco ou tanto fazia na casa, por isso, aguentou muito pouco. E o que eu gosto de campo e de ambientes rurais. Por isso, em vez de estar em cima do muro sempre a apontar, vamos descer lá abaixo e aprender com o desconhecido.

Na realidade, já que o Michel não explicou, e pode corrigir-me a qualquer momento, a passagem dele pela casa mais vigiada do país trouxe muito mais do que estamos à espera em televisão. Respeito aos mais velhos, sentido de família, a ideia de que os afrodescendentes devem começar a ser notados e respeitados com a sua idiossincrasia e a ideia de que podemos estar todos juntos e misturados, sem problemas de comunicação por falta de atenção ou ausência de informação, por opção.

Para mim, pecou apenas por não cantar mais, por não rappar mais, porque se entendemos a forma como o Sam The Kid e o Valete se foram formando, o Michel, aos 23 anos, tem o mundo pela frente.

Saravá.

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