Depois de um segundo episódio centrado no papel do pai, no terceiro episódio da rubrica Bem Me Quer by Barral falamos sobre um tema de extrema relevância: as marcas deixadas pela infância e a forma como estas influenciam a vida adulta. Como é habitual, a coordenadora editorial da SELFIE, Cátia Soares, conta com a presença da psicóloga Tânia Correia, que responde a muitas das questões que nos foram colocadas pelos seguidores nas redes sociais.
"É com foco no que a criança vai precisar de fazer para agradar aos pais que ela se vai construindo." (Tânia Correia)
Por mais resistência que haja em relação a este tema, está amplamente estudado que a infância é uma fase crucial na nossa construção, sendo que as experiências vividas nessa fase servem como lentes através das quais vamos olhar para nós, para os outros e para o meio à nossa volta.
Também nesses primeiros anos de vida, o amor dos pais desempenha um papel determinante na nossa construção. Quando uma criança sente que é amada incondicionalmente, ela desenvolve uma sensação de segurança e autoestima. O mesmo não acontece quando a criança percebe que o amor dos pais "tem condições" e começa, a partir daí, a desenvolver comportamentos de busca constante por aprovação.
"O papel dos pais é determinante, pode mudar tudo na maneira como uma criança se vai desenvolver e no tipo de adulto em que ela se vai tornar. É com foco nos pais e no que eu vou precisar de fazer para agradar aos meus pais que eu me vou construindo", sublinha a psicóloga Tânia Correia.
"Para a criança, o que está em causa não é a nota, é a possibilidade de perder o amor dos pais." (Tânia Correia)
Há casos em que a criança percebe que se tiver, por exemplo, um bom desempenho escolar, é mais notada pelos pais, pelo que vai procurar, cada vez mais, ter uma boa performance.
"É angustiante para as pessoas que sentem isto, porque elas nunca atingem um ponto de orgulho. Para elas, o que está em causa não é a nota, é a possibilidade de perderem o amor dos pais", esclarece a psicóloga.
"Vão para as relações à procura de pessoas que precisem de ser cuidadas." (Tânia Correia)
Além do desempenho, há também crianças que percebem que cuidarem dos outros é a forma de obterem a atenção e o amor dos pais, que são mais valorizadas quando ocupam o lugar do "cuidador". Este comportamento pode ditar o tipo de relações que vão ter no futuro, nomeadamente relações tóxicas, em que a pessoa sente que precisa de cuidar do outro para ser amada, perpetuando um ciclo de dependência emocional.
"Vão para as relações à procura de pessoas que precisem de ser cuidadas, porque estas vão trazer-lhes a sensação de que elas servem para alguma coisa", afirma Tânia Correia.
"Há muita ferida da rejeição." (Tânia Correia)
Outras crianças sentem-se de tal forma rejeitadas na infância que isso terá repercussões no futuro, como refere a psicóloga: "Há muita ferida da rejeição, infelizmente, por não se sentirem aceites, o que faz com que nem sequer tentem, no futuro, entrar nas relações, com receio de serem rejeitadas."
"Vão aprender a vir para as relações numa ótica de: 'Está sempre tudo bem para mim.'" (Tânia Correia)
Paralelamente, temos também crianças que percebem que quando não dão trabalho ou quando passam despercebidas são mais elogiadas: "Elas vão aprender a vir para as relações numa ótica de: 'Está sempre tudo bem para mim'; 'Tanto faz'; 'É o que tu quiseres'; 'Eu não preciso de nada'."
"Aprendo que expressar as emoções é negativo." (Tânia Correia)
E, neste contexto, é importante lembrar que a contenção das emoções é outra marca deixada pela infância. Se uma criança aprende que expressar emoções é negativo, ela pode crescer sem saber como processar e expressar aquilo que sente, como frisa Tânia Correia: "Se eu não aprender na infância para que é que as emoções servem ou se me ensinarem a contê-las, eu vou guardá las para mim e vou continuar com isto ao longo da vida, porque aprendo que expressar as emoções é negativo."
"80% das pessoas disseram-nos que sentem que os pais não as conhecem." (Tânia Correia)
Ainda sobre a vinculação entre pais e filhos, que se inicia nos primeiros anos de vida, está amplamente estudado que esses padrões vão acompanhar-nos para sempre e que a tendência é para que aquilo que nos faltou se perpetue na relação.
"A fase de construir a confiança nos meus pais, de eu saber com o que é que conto destas pessoas e de eu me entregar livremente à relação começa na infância. Nós também tivemos a oportunidade de perguntar às pessoas se sentem que os seus pais as conhecem atualmente e 80% das pessoas disseram-nos que não. Tivemos várias gerações que estavam tão focadas no desempenho e no comportamento que não houve esta possibilidade de a criança se poder mostrar, de poder trazer quem ela é, de eu a ajudar a observar as características que são da sua essência", lamenta a psicóloga.
"Não há aquela sensação de 'gostam de mim como eu sou.'" (Tânia Correia)
Quando aquilo que os pais fazem é criticar e reprimir as características da criança, ela vai ganhar vergonha em relação a essas características, porque vai passar a achar que há algo de errado com ela e vai esconder, como acontece muito com crianças curiosas, que são apelidadas de "chatas" e "bisbilhoteiras", ou crianças sensíveis, tantas vezes apelidadas de "mariquinhas".
"Das pessoas que elas mais queriam ter aceitação, que são os pais, essa aceitação não chega. Não há aquela sensação de 'gostam de mim como eu sou.'", reforça Tânia Correia.
"Há alguns casos em que, efetivamente, o afastamento dos pais é a única saída." (Tânia Correia)
E a verdade é que existem mesmo relações com pais que são tóxicas, como desmistifica a psicóloga: "Lamentavelmente, continuamos a vender às pessoas a ideia de que: 'Mãe é mãe'; 'Família é o melhor que nós temos na vida, é a única coisa que que fica connosco para sempre'; 'Temos que cuidar de quem cuidou de nós'... E isso está longe de ser de ser verdade. Há alguns casos em que, efetivamente, o afastamento dos pais é a única saída. E gostava mesmo de reforçar esta mensagem, porque continua a ser pouco passada. Há mães e pais que, por exemplo, são narcisistas, que tentam manipular, que usam muito os filhos para atingir determinados fins. Isto é tóxico."
"Os filhos amam tanto os pais que a tendência é culparem-se quando a relação não resulta." (Tânia Correia)
"Os filhos amam tanto os pais que a tendência é culparem-se quando a relação não resulta, acharem que ainda há algo em si que podia ser diferente. E muitos filhos perseguem isto anos a fio, continuam a tentar dar provas. O que muita gente diz é: 'Eu só gostava que os meus pais fossem normais.' Outras vezes, é: 'Não vai acontecer, os meus pais não têm mais do que aquilo para me dar", enfatiza Tânia Correia.
"É muito difícil fazer lutos de pais em vida." (Tânia Correia)
Nestes casos, é importante que os filhos reflitam, percebam se as suas expetativas estão ajustadas e decidam qual é o melhor caminho a seguir: "É muito difícil fazer lutos de pais em vida. Mesmo que a relação continue, eu vou precisar de me despedir daquilo que eu gostava que ela fosse, para finalmente poder aceitar a pessoa que tenho à frente. 'Eu sei que é com isto que posso contar, sei que é isto que esta relação tem para me dar e eu aceito que é assim. Ou, noutros casos, o luto é efetivamente: 'Isto não é saudável para mim e eu não posso continuar aqui.'"
Por fim, Tânia Correia destaca que o importante é as pessoas "cuidarem de si e quebrarem este padrão, assegurarem que, a partir daqui, ninguém voltará a passar por isto, ninguém será obrigado a ficar quando não está num ambiente que é saudável, seja em que relação for, que inclui relação com os pais."
"E eu saber que mereço sempre o meu amor, porque eu vou estar lá em todas as situações que acontecerem. Dizer para mim mesma: 'O teu valor está assegurado, tu és maravilhosa, o que aconteceu não muda quem tu és, eu vou estar aqui sempre, haja o que houver, vou estar ao teu lado e nós vamos resolver e melhorar o que for preciso. Mas tu tens valor à mesma!' Isto é de uma leveza gigante", conclui.
Bem Me Quer by Barral é uma rubrica sobre maternidade, parentalidade e saúde mental de pais e filhos. Neste projeto, a SELFIE conta com a psicóloga Tânia Correia e com o apoio da Barral, um parceiro que se preocupa, acima de tudo, com o bem-estar das famílias.
Tânia Correia | Psicóloga, mestre em Psicoterapia Cognitiva-Comportamental na área da infância e adolescência | OPP: 24317