Depois de um quarto episódio centrado na problemática da desconexão entre o casal após a chegada de um filho, no quinto episódio da rubrica Bem Me Quer by Barral falamos sobre infertilidade. Como é habitual, a coordenadora editorial da SELFIE, Cátia Soares, conta com a presença da psicóloga Tânia Correia, que responde a muitas das questões que nos foram colocadas pelos seguidores nas redes sociais.
"Há muitos casais que demoram vários meses ou anos a engravidar. E não há nenhuma questão física ou orgânica que explique isto." (Tânia Correia)
Ainda antes de se debruçar a fundo no tema deste episódio, a psicóloga aproveitou para esclarecer que nem sempre estamos perante um quadro de infertilidade e que é preciso algum cuidado na forma como abordamos o assunto.
"Às vezes, parece que só temos duas categorias: quem quis engravidar e conseguiu logo quase automaticamente e quem quer muito, não consegue e, por isso, está num processo de infertilidade. Parece que a partir do momento em que estamos a tentar engravidar e passou o primeiro mês, o segundo mês... temos então infertilidade. Mas não. Há muitos casais que demoram vários meses, alguns demoram anos mesmo. E não há nenhuma questão física ou orgânica que explique isto. É o tempo de que precisavam", começou por sublinhar.
"E é curioso como é que o mesmo casal pode ter padrões tão distintos. Há, por exemplo, famílias que têm quatro filhos e todos com timings muito diferentes: o primeiro demorou anos, o segundo foi quase imediato, o terceiro voltou a demorar anos, o quarto já foi imediato... Portanto, existem estas oscilações mesmo no mesmo casal", acrescentou Tânia Correia.
"Parece que o meu corpo não está a desempenhar aquilo que seria suposto. É visto como: 'Eu falhei o meu propósito de vida. Então, para que é que eu estou aqui?'" (Tânia Correia)
Com o processo de engravidar, são muitas as questões com as quais os casais se deparam, nomeadamente os desafios emocionais e os estigmas sociais.
"É um processo duro e frustrante. É precisar lidar com a desilusão das pessoas quando se comunica que, afinal, veio mais um negativo. É preciso lidar com a vergonha e a culpa, porque parece que o nosso corpo não está a desempenhar aquilo que seria suposto. É visto quase como: 'Eu falhei o meu propósito de vida.' Quase que há um questionamento interno: 'Então, para que é que eu estou aqui?' E isto é um tipo de preconceito e de estigma que nós precisamos de continuar a trabalhar para desconstruir", frisou a psicóloga.
"Podemos estar a perguntar a uma pessoa se ela não vai ter filhos e ela já estar a tentar há muito tempo ou pode até ter acabado de sofrer uma perda." (Tânia Correia)
A verdade é que nunca sabemos o que é que a pessoa está a viver ou a passar, pelo que nunca devemos esquecer-nos de que há perguntas que podem magoar o outro: "Nós podemos estar a perguntar a uma pessoa se ela não vai ter filhos e ela já estar a tentar há muito tempo ou pode até ter acabado de sofrer uma perda."
Além das perguntas, há afirmações que podem ter um impacto muito duro no casal, como descreveu Tânia Correia: "É comum ouvirem-se frases, como: 'Vê lá, depois, vocês já vão parecer avós, já nem vão parecer pais.' Às vezes, há também algum tipo de chantagem emocional/manipulação, em que dizem aos casais: 'Eu queria tanto ter um neto e vou morrer sem saber o que é ter um neto.' Isto é uma pressão enorme. É sentir que estou a desiludir alguém de quem eu gosto muito, que não estou a corresponder ao que alguém espera, no fundo, de mim. E ouvimos ainda outras frases que geram muita culpa: 'Isso é stress'; 'Tu é que não sabes relaxar. Se tu relaxasses...'; 'É tudo da tua cabeça'; 'No dia em que tu relaxares, acontece'".
"'Vocês já vão parecer avós'; 'Eu queria tanto ter um neto e vou morrer sem saber o que é ter um neto'; 'Isso é stress. Não sabes relaxar' e 'Ele pode ir procurar noutro lado' são algumas das frases mais comuns." (Tânia Correia)
No caso da mulher, há ainda outras frases associadas à pressão para que "cumpra o papel de ser mãe": "Como existe a noção de que o tempo da mulher para ter filhos vai acabar e que o homem vai poder continuar se assim quiser, surgem frases como: 'Vê lá, porque se não conseguires neste timing, ele pode ir procurar noutro lado.' Mais uma vez, a mulher é sempre muito posta em causa. É tudo atribuído à mulher e ao seu propósito de vida."
"É normal sentirmos inveja e isso não faz de todo de nós más pessoas." (Tânia Coreia)
É também muito comum nestas situações a mulher sentir inveja quando tenta engravidar sem êxito ao mesmo tempo que vê colegas e amigas engravidarem.
"É muito comum chegarem às sessões a dizer-me: 'Tãnia, vou já mostrar-lhe o que de pior existe em mim. Eu sou mesmo má pessoa. Imagine, a minha irmã está grávida e eu estou feliz por ela, mas, ao mesmo tempo, sinto inveja, porque estou a tentar engravidar há anos e não consigo e ela começou a tentar no mês passado e já está grávida.' É normal surgir este tipo de inveja em que queremos também estar num lugar que associamos a mais brilho, felicidade e maior conexão com o nosso propósito, com aquilo que estamos à procura na vida. E isso não faz de todo de nós más pessoas", explicou.
A verdade é que, quando iniciamos um relacionamento, há muitos temas sobre os quais os casais não falam em profundidade. Um deles é precisamente a infertilidade.
"Há muitos tópicos que não estão definidos, mesmo a parte de se queremos ter filhos ou não. Mas, e se não conseguirmos imediatamente? E se não for só a questão do imediatamente? E se algum de nós não tiver essa possibilidade? O que é que isso significa? Eu, que estou do outro lado, vou aceitar isto em ti, ou não? Estamos os dois em sintonia em relação a isso? Muitas vezes, não se fala sobre isto, não está definido, porque parte-se do pressuposto de que vai correr tudo como gostaríamos que corresse, de uma forma mais leve e natural. Mas, quando não acontece, é preciso reajustar expetativas e, portanto, o casal tem muito trabalho pela frente. É preferível conversas mais cruas, em que se fala abertamente sobre o tema do que ficarmos num limbo em que quando há uma discussão isto aparece e aparece da pior forma possível", lamentou Tânia Correia.
"Há pessoas que nos dizem que foi um fator de união para o casal." (Tânia Correia)
Por outro lado, há casos em que uma situação como esta acaba por aproximar ainda mais o casal: "Há pessoas que nos dizem que foi um fator de união para o casal. O facto de fazerem os tratamentos, de só os dois saberem e lidarem com o resultado, ainda que estivessem um bocadinho fechados do mundo e existissem algumas desvantagens, havia esta vantagem que era estavam muito próximos."
No caso dos casais que chegam mesmo a recorrer a tratamentos para engravidar, o impacto na relação assume ainda outros contornos: "Para algumas pessoas, é um investimento financeiro grande, além de emocional. Estarem durante algum tempo sem saberem qual será o desfecho é uma perda de controlo muito grande. Aqueles dias até se saber o resultado podem ser muito muito duros. E, quando chega um resultado um negativo, é muito comum as mulheres pensarem: 'Mas será que foi por causa daquela vez em que me baixei mais repentinamente?'; 'Será que foi quando puxei o saco das compras?'; 'O que é que eu terei feito?'; 'Se calhar, há alguma culpa minha nesta situação.' Para quem quer tanto engravidar e está a doar o seu corpo - porque tu doas o teu corpo para ele passar por procedimentos, para pessoas mexerem nele - para quem já está a fazer tanto, a dar tanto de si, ter ainda de lidar com a culpa não é fácil: 'Se calhar, isto não correu bem e eu sou a responsável'. É de uma dureza muito grande."
"É muito comum as mulheres pensarem: 'Será que foi por causa daquela vez em que me baixei mais repentinamente?'; 'Será que foi quando puxei o saco das compras?'; 'O que é que eu terei feito?'; 'Se calhar, há alguma culpa minha nesta situação.'" (Tânia Correia)
Segundo a psicóloga, há depois alguns cenários preocupantes e muito comuns, sobretudo em casais que já sofreram alguma perda: "A dada altura, é difícil acreditar que desta vez vamos chegar onde pretendíamos. Para muitos, é difícil, então, não há um investimento grande durante a gravidez e, depois, quando finalmente recebem o bebé no colo parece que acelerámos o processo e que eu passei de não estar grávida, porque não estava a ser possível, para: 'Tenho um bebé no colo e eu não me conectei com ele. E agora? Como é que eu faço isto?' Mais uma vez, a palavra de ordem é: culpa. 'Mas tu querias tanto isto!' E muitos casais nem podem falar do tema com ninguém, senão ouvem logo: 'Mas vocês estiveram cinco anos a tentar. Queriam tanto, passaram por isto, agora têm um bebé e estão a dizer que não estão em êxtase por recebê-lo?' Às vezes, não estamos porque ainda não percebemos que isto é bem real. Não é não amar o bebé - eles virão a amá-lo - mas ainda não conseguiram conectar-se. Até porque, às vezes, há uma voz de perda que fica aqui um bocadinho ativa: 'Se calhar, ainda vai acontecer alguma coisa a este bebé.'"
Surgem, então, dois caminhos que devem ser analisados a fundo, como recomendou Tânia Correia: "Ou há um investimento muito grande e depois uma superproteção, porque 'este bebé é tudo na nossa vida e não há mais nada, por isso, temos que ter imenso cuidado para ele não se magoar, para não estar em perigo'. Ou há um distanciamento, porque 'eu não me posso conectar com o bebé, porque eu não sei se ele vai ficar, não sei se este percurso de ser mãe/pai é mesmo para mim.' Então, há depois muita dificuldade em os pais se envolverem na vida deste bebé e desta criança."
Bem Me Quer by Barral é uma rubrica sobre maternidade, parentalidade e saúde mental de pais e filhos. Neste projeto, a SELFIE conta com a psicóloga Tânia Correia e com o apoio da Barral, um parceiro que se preocupa, acima de tudo, com o bem-estar das famílias.
Tânia Correia | Psicóloga, mestre em Psicoterapia Cognitiva-Comportamental na área da infância e adolescência | OPP: 24317