Depois de um quinto episódio centrado na problemática da infertilidade, no sexto e último episódio da segunda temporada da rubrica Bem Me Quer by Barral falamos sobre divórcio. Como é habitual, a coordenadora editorial da SELFIE, Cátia Soares, conta com a presença da psicóloga Tânia Correia, que responde a muitas das questões que nos foram colocadas pelos seguidores nas redes sociais.
"O que eu sinto que é um problema é a forma como as pessoas escolhem as relações: sem grandes critérios." (Tânia Correia)
Ainda antes de se debruçar sobre o tema do episódio, a psicóloga aproveitou para deixar um alerta sobre aquilo que, na sua visão, está na origem de muitos divórcios: "O que eu sinto que é um problema é a forma como as pessoas escolhem as relações: sem grandes critérios. Quem é que eu sou? O que é que gosto em mim? O que é que aceito ou não aceito numa relação?"
"Pode ser mais provável eu vir a ter um divórcio." (Tânia Correia)
Por outro lado, acrescentou que crescermos no seio de famílias com pais separados também pode ter algum peso na forma como se vão desenvolver as nossas relações no futuro: "Se eu aprendi que as relações têm moldes pouco saudáveis e que acabam em divórcio, pode ser mais provável eu divorciar-me mais vezes ou ter mais probabilidade de vir a ter um divórcio."
"O divórcio, em si, costuma não ser o problema." (Tânia Correia)
A verdade é que uma separação pode tornar-se muito dura e complexa, seja para os pais, seja para os filhos.
"O divórcio, em si, costuma não ser o problema. O problema é o 'durante', como é gerida a comunicação com a criança, e o 'após'... É muito confuso quando não há uma comunicação com a criança a dada altura e não se explica o que é que se está a passar", frisou.
"Quando o pai ou a mãe também se 'divorcia' da criança, é mais difícil." (Tânia Correia)
Tânia Correia referiu então um dos principais problemas que surgem na sequência de um divórcio: "Um aspeto que eu diria que até é o mais frequente na prática clínica é o facto de, depois do divórcio, um dos progenitores desaparecer. Quando o pai ou a mãe também se 'divorcia' de mim, criança, é mais difícil eu não achar que também estou envolvido. Se eu não sou culpado de nada, se eu não estou envolvido na situação, por que é que este adulto também me deixou?"
"Começo a canalizar a minha zanga para a criança e a tratá-la quase como tenho vontade de tratar o outro." (Tânia Correia)
Outro aspeto que dificulta um processo de pós-divórcio é olhar para a criança e começar a projetar o outro progenitor: "'Está a fazer aquilo como a mãe fazia'; 'Já está com aquele comportamento igual ao do pai.' Começo a canalizar a minha zanga, que às vezes também ainda não está trabalhada, para a criança e começo a tratá-la quase como tenho vontade de tratar o outro."
"Coloca a criança numa situação quase de traição e tem sequelas." (Tânia Correia)
Noutros casos, temos também aquilo a que se chama na literatura usar a criança como detetive: "Isto é muito duro, coloca a criança numa situação quase de traição: 'Para conseguir vínculo com uma parte, tenho de fazer coisas às escondidas e, de certa forma, trair a outra.' Isto é muito difícil para os miúdos processarem. Já numa situação de divórcio em geral há esta sensação, parece sempre que estou a trair alguém... Se os adultos alimentarem esta ideia de 'tu tens de escolher! Estás do lado de quem? Tens de dizer se me vais ajudar a mim neste processo, prejudicando o outro, ou não' é pesadíssimo e tem sequelas. É importante deixar mesmo claro: isto depois tem sequelas ao longo do crescimento."
"Se me cobrarem, até com represálias, é mesmo uma experiência traumática." (Tânia Correia
Até em situações aparentemente banais como quando a criança está numa festa da escola, sai do palco e tem de escolher se vai ter com a mãe ou com o pai.
"Em que direção é que vou? Se me cobrarem, ainda mais difícil é, porque sei que a minha decisão vai ter consequências. Eu vou escolher um e a outra parte depois vai cobrar-me isso, às vezes até com algum tipo de represálias associadas. 'Não escolheste o teu pai hoje? Então, o teu pai que te compre isto'; 'Não escolheste a tua mãe? Então, ela que vá à reunião da escola.' Isto é mesmo uma experiência traumática", sublinhou a psicóloga Tânia Correia.
"Para a criança, nunca é visto como um desabafo." (Tânia Correia)
Mesmo o ato de falar mal do ex-marido ou da ex-mulher aos filhos continua a ser muito comum, como lamentou Tânia Correia: "Para a criança, nunca é visto como um desabafo. Nós estamos a falar de alguém de quem ela gosta muito. Depois, ainda há este extra que é: 'O que é que eu faço com esta informação? Agora, tenho de contar à outra pessoa que me disseram isto sobre ela?"
"Por que é que não fui eu o escolhido?" (Tânia Correia)
A criança já está a passar por um processo de luto, de despedida da realidade que conhecia anteriormente, e, muitas vezes, ainda tem de lidar também com a separação dos irmãos: "Não só a realidade mudou, como agora ainda perdi aquele ou aquele, o meu irmão ou a minha irmã, que seriam a base, alguém que está a passar pelo mesmo. Nós agora podíamos estar juntos a partilhar a experiência e eu perco também acesso. E mesmo esta visão: 'Por que é que não fui eu o escolhido, se eu até queria ficar com a mãe também, não queria ficar com o pai?' Ou o oposto."
"O papel de padrasto ou de madrasta não está tão bem estabelecido como o de pai ou de mãe." (Tãnia Correia)
Depois, também há os casos em que surge um padrasto ou uma madrasta, sem que a criança tenha sido devidamente preparada: "É uma peça que de repente quase que cai ali de paraquedas... Para a criança é quase como: 'Adapta-te. A escolha está feita. Agora, tens de lidar.'"
"Vou ter de dar provas de que ela pode confiar em mim, de que estou disponível, de criar uma relação emocional com ela..." (Tânia Correia)
A introdução desta figura tem aqui contornos que, à partida, são complexos, como explicou a psicóloga: "Até porque o papel de padrasto ou de madrasta não está tão bem estabelecido como o de pai ou de mãe. O padrasto é alguém que pode falar sobre isto ou que não pode? A madrasta é alguém que pode interferir aqui ou não pode? A zona saudável é aquela zona em que eu vejo a criança, em que olho para ela, percebo que ela não está ali porque quer, não me escolheu, em que percebo que, se calhar, ela ainda está também no processo de luto dela, que entendo que, infelizmente, se calhar, há outra parte a pressioná-la para não me aceitar... E, portanto, não posso olhar para os comportamentos dela como algo pessoal contra mim, porque, à partida, se eu for alguém que tem amor para dar, as crianças querem, querem muito, estão recetivas. E há casos em que a parte mais complexa para a criança é até sentir mais afinidade com esta madrasta ou com este padrasto do que sente com os próprios pais. E aqui o que eu noto é que há muitos padrastos e madrastas que entram na relação já tão focados na educação que a relação fica ali... Eu preciso de entender que vou ter de dar provas de que ela pode confiar em mim, de que estou disponível, de criar uma relação emocional com ela..."
"'Por que é que nós éramos tão próximos e, de repente, parece que já não gostas de mim?'" (Tânia Correia)
E, posteriormente, podem surgir ainda outras questões quando, por exemplo, a minha mãe tem um filho com o meu padrasto: "Começarmos a investir numa nova relação não significa que tenhamos de desinvestir de outra. Sobretudo da parte do padrasto ou da madrasta que, como tem o seu filho agora, parece que este então já não é. E a criança depois não entende: 'O que é que aconteceu aqui? Por que é que nós éramos tão próximos e, de repente, parece que já não gostas de mim?'"
"O fio que me liga àquela pessoa que entrou na vida do meu filho não tem de ser o mesmo fio que liga o meu filho a essa pessoa." (Tânia Correia)
Também aqui o papel da mãe ou do pai é fundamental para que a criança possa desenvolver uma relação saudável com o padrasto ou com a madrasta.
"Se eu, do outro lado, tiver um pai ou uma mãe que dizem: 'Nós amamos-te. Esta vai ser mais uma pessoa para te amar, para te acarinhar, para te proteger, para torcer por ti nos momentos importantes da tua vida...' Isto para a criança traz aqui uma liberdade... Porque os meus pais estão seguros do amor que eu tenho por eles", destacou.
"O fio que me liga àquela pessoa que entrou na vida do meu filho não tem de ser o mesmo fio que liga o meu filho a essa pessoa. Eu posso não me identificar, posso não gostar ou posso não querer ter aquela pessoa próxima de mim por algum motivo, mas se esta pessoa tem uma boa relação com esta criança, se é promotora de segurança, de proteção, de cuidado e de carinho, eu separo as coisas", acrescentou.
"A criança não está a aguentar a dor que isto provoca e está a procurar uma zona onde possa desconectar-se dessa realidade." (Tânia Correia)
A psicóloga fez também questão de alertar para alguns comportamentos aparentemente positivos da criança após o divórcio que podem, no entanto, esconder outros contornos.
"Quando perguntamos o que é que facilitou o processo de adaptação ao divórcio, muitas pessoas dizem: 'O que me ajudou muito foi poder refugiar-me na escola. Comecei a estudar muito, a tirar boas notas, até acabou por ser um incentivo bom.' Certo, o resultado até pode parecer positivo, porque teve boas notas, mas o processo em si não é assim tão positivo. Na verdade, a criança não está a aguentar a dor que isto provoca e está a procurar uma zona onde possa desconectar-se dessa realidade."
"Para muitas pessoas, o grande peso do divórcio era gerir as épocas festivas. Se a criança não for o foco, todos os processos são muito pouco saudáveis." (Tânia Correia)
E já que o Natal está aí à porta, não poderíamos deixar de falar também sobre as questões que um divórcio pode colocar nas épocas festivas.
"Para muitas pessoas, o grande peso do divórcio era gerir as épocas festivas. Com quem é que a criança fica? Ela sentir que era arrastada, quando os pais são pouco flexíveis e não olham para ela, e começavam a querer dividi-la muito no próprio dia. O relato que nos davam era: 'Parecia que estava em todo o lado e, ao mesmo tempo, não estava em lado nenhum, porque não havia este parar, não havia margem para sentir... A culpa também surge nessas épocas, porque parece que estou sempre a perder alguma coisa... Todos estes processos, se a criança não for o foco, são muito pouco saudáveis", reforçou Tânia Correia.
"Estamos mais focados no que são as nossas necessidades enquanto pai ou mãe, porque queremos estar com a criança e não queremos que ela goste mais do outro." (Tânia Correia)
E há efetivamente pais e mães que só aparecem na vida dos filhos nas épocas festivas e que, mesmo assim, se sentem no direito de exigir a presença destes.
"Estamos mais focados no que são as nossas necessidades enquanto pai ou mãe, porque queremos estar com a criança e porque não queremos que ela goste mais do outro... e esquecemo-nos de pensar: 'Mas o que é que ela quer? E se for o melhor para ela? E se ela sente que é o melhor para ela?'"
"'Tratares por mãe ou pai esta outra pessoa nem pensar, isso não pode acontecer.'" (Tânia Correia)
São também muitas vezes estes pais pouco presentes que continuam a impedir os filhos de se aproximarem dos padrastos ou das madrastas: "Situações em que, por exemplo, a criança passa a tratar, naturalmente, a madrasta ou o padrasto por mãe ou pai, porque passam muito tempo juntos e há muita afinidade. E estes pais ou estas mães do outro lado ficam muito ofendidos. Não estão nada envolvidos, mas dizem logo: 'Tratares por mãe ou pai esta outra pessoa nem pensar, isso não pode acontecer.'"
Até porque há muitos pais que ainda não superaram o divórcio e que fazem questão que os filhos saibam: "Dizem coisas como: 'Por mim, ainda estávamos juntos'; 'Se dependesse de mim ainda podíamos estar'... E a criança quase que, às vezes, tem que andar aqui a pensar em formas de voltar a unir os pais..."
Por último, a psicóloga Tânia Correia deixou uma recomendação a todos os pais: "É um conselho que eu acho que podíamos dar a temporada inteira sempre que falamos de crianças: tirem-se deste papel mais egocêntrico e olhem efetivamente para o que têm à frente, para as necessidades, para o que esta criança está a pedir, para quem vocês desejam que ela seja daqui a dez ou vinte anos como tantas vezes falámos."
Bem Me Quer by Barral é uma rubrica sobre maternidade, parentalidade e saúde mental de pais e filhos. Neste projeto, a SELFIE conta com a psicóloga Tânia Correia e com o apoio da Barral, um parceiro que se preocupa, acima de tudo, com o bem-estar das famílias.
Tânia Correia | Psicóloga, mestre em Psicoterapia Cognitiva-Comportamental na área da infância e adolescência | OPP: 24317